sábado, 13 de abril de 2019

Old Norse, a Saga: Cap. IV – O Funeral (continuação)

Salve, vikings e medievalistas!

Estamos alguns meses da edição deste ano do Old Norse e, pra ir entrando no clima, que tal dar uma olhada em como foi a conclusão do último capítulo da saga?



Como vocês sabem, o Old Norse é um acampamento viking que vem desde sua primeira edição, em 2015, contando uma saga, cujo sexto capítulo será apresentado na edição deste ano de 2019. A narrativa deste post conclui o quarto capítulo, conforme acontecimentos durante a edição de 2018.



Caso você não tenha acompanhado os capítulos anteriores desta saga, pode conferi-los aqui:


Capítulo II – Portões de Valhala (continuação)

Capítulo III – Yule (prelúdio)

Capítulo III – Yule (continuação)


Capítulo IV – O Funeral (Prelúdio)


O texto que vocês estão prestes a ler é a narrativa romanceada de cenas que realmente aconteceram durante a edição de 2017 do Old Norse! Ou seja, as pessoas que estiveram presentes no evento puderam ver em primeira mão esses personagens, acompanhar seus atos e escutar suas falas. Algumas imagens são do Cena Medieval e outras do fotógrafo Daniel Carvalho.




Capítulo IV – O Funeral (continuação)


A notícia havia se espalhado, como era de se esperar. O rei estava morto e todos que ostentavam alguma posição ou título vieram, não apenas para prestar seu respeito, mas também para saber a questão essencial: quem seria o novo rei.

Um grande acampamento se formou em volta da vila de Eiðr.


Muitos chegavam perguntando por Astrid, a filha de Eiðr, e eram logo informados de que ela e seu marido celta haviam desaparecido. O funeral aconteceria normalmente, como deve ser, presidido pelo ancião Einar e pela völva Thorbjörg.

Além disso, percebendo a oportunidade, Uffe e Bjorn, os dois jarls mais proeminentes, não perderam tempo em se fazer notar, em conversar com todos e em assumir posições de liderança naquela situação.

Bjorn, filho de Bjern, era um jarl guerreiro, líder de numerosas expedições para o oeste, e agora era reconhecidamente rico.

Uffe, filho de Knut, era um jarl político, conhecido pelo seu domínio das palavras e das pessoas. Seu pai, Knut, havia liderado também muitas expedições para o oeste, mas Knut havia decidido seguir um caminho diferente.

E as diferenças entre ambos logo ficaram evidentes para todos os presentes.

– Amigos! Irmãos! Essa é uma situação triste, mas vamos deixar as lágrimas para a noite, quando a pira de Eiðr queimar. Enquanto ainda é dia, vamos aproveitar a música e a comida.

E de fato, Uffe havia trazido um casal de músicos para tocar no acampamento, além de comida em fartura. Muitas pessoas estavam reunidas naquele momento, ouvindo as palavras do jarl.

– Isso é um absurdo! – interrompeu Bjorn, saindo da multidão – Devemos aproveitar esse momento para planejar novas viagens para o oeste! Estão vendo isso aqui? – dizia ele levantando o braço, exibindo suas pulseiras e aneis – é prata e ouro. Do oeste, pra quem quiser ir buscar. Pra quem tiver coragem!


Uma discussão começou entre os dois, o clima ficou tenso. A curiosidade fez com que mais pessoas se aproximassem para presenciar o encontro dos dois jarls conflitantes.

– Silêncio! – disse a voz de Einar, o ancião – Esse tipo de questão deve ser decidida na thing, logo após a queima do corpo.


Nenhum dos dois jarls teve coragem para constestar as palavras do ancião. O povo se dispersou. Quem queria ouvir música seguiu Uffe e os músicos em uma direção, quem queria ouvir histórias de viagem seguiu Bjorn em outra.

Na clareira restou apenas o próprio ancião Einar, e ninguém viu quando uma velha de coluna torta, seguida por dois gatos e com um terceiro no colo, se aproximou para conversar com o ancião...

***

O dia se transformou em noite, fogueiras foram acesas. Um barco havia sido construído especialmente para a pira funerária.

Cânticos fúnebres soaram pelo acampamento, chamando aqueles que ainda estavam dispersos. Nos ombros de oito homens o barco foi carregado, seguidos pela multidão que rapidamente se formou, até o local que havia sido previamente preparado para a pira. O corpo do rei foi trazido numa maca, e respeitosamente colocado dentro do barco.


Andando em volta, a völva fez um discurso, falando para cada uma das pessoas ali presentes, para todos, e ao mesmo tempo para ninguém. Suas palavras falavam da vontade dos deuses e do destino dos homens, que dependia sobretudo de sua coragem.

– Despeçam-se do seu rei! – concluíu ela, e aqueles que traziam tochas se aproximaram para entregar o fogo à pira.


Na cabeça de cada um ali as palavras da völva ecoavam e era impossível não pensar na vida do próprio rei Eiðr. Era uma história de decadência, de falhas, mas ao mesmo tempo uma história de coragem. O falecido rei havia reunido uma quantidade grande de barcos e homens para viajar para o oeste. Havia voltado de mãos abanando e sem sua filha Astrid, que havia decidido casar com um dos celtas. Havia recebido a notícia de que Astrid fora raptada por um jarl rival, e havia com coragem liderado uma expedição para resgatá-la. Havia conseguido voltar com a vida de sua filha e com a própria, mas talvez fosse melhor que tivesse morrido na viagem, pois nada lhe aguardava em seu salão além de vergonha, tristeza e afogamento na cerveja. E como um bêbado ele havia morrido.

Aproveitando a concentração do povo reunido em volta da pira, Einar tomou a palavra, dando início à Thing, a assembléia de homens livres.



– Eiðr foi lembrado, Eiðr foi velado e queimado, mas Eiðr está morto. Precisamos agora de um novo rei!

Silêncio.

– Há entre os jarls alguém que se considere digno?

Uffe e Bjorn deram um passo a frente, ficando no centro do círculo, onde a pira ainda queimava.

Todos ali, incluindo os dois Jarls, esperavam que a questão fosse decidida por uma votação. Os próprios Jarls esperavam isso, e por esse motivo cada um havia trazido tantos homens quanto podia, para aumentar as próprias chances. E seguindo esse pensamento, todos ali já sabiam que o novo rei seria Uffe ou Bjorn. Ambos haviam trazido quantidades similares de homens, mas o contingente de cada um era muito maior do que o de qualquer dos outros jarls. E considerando que ambos haviam trazido quantidades similares de homens, a questão então deveria ser decidida pelos votos dos demais ali presentes: homens do falecido rei Eiðr e de outros jarls. Todos conheciam Uffe e Bjorn, seus nomes e seus feitos, e todos haviam tido a oportunidade de vê-los de perto. Quem escolheriam?

Mas enquanto todos pensavam nisso, um sorriso estranho brincava no rosto do ancião Einar, um sorriso que poucos perceberam, mas apenas a völva Thorbjorn soube interpretar.

– Mesmo os deuses podem errar, Einar... - disse ela em tom de advertência, de forma que apenas ele pudesse ouvir.

Mas o ancião ignorou a advertência da völva.

– Horik, filho de Hrolf! E Frodi, filho de Ivar! Apresentem-se!

A fala do ancião surpreendeu a todos, inclusive os jarls. Horik era um dos homens de Uffe, e Frodi um dos homens de Bjorn. Ambos bons guerreiros, conhecidos por sua coragem e por sua lealdade aos seus respectivos jarls.

– Vocês deverão lutar agora, um duelo até a morte, para que o sangue lave a terra e preste uma última homenagem ao falecido rei Eiðr! E aquele que tirar a vida do outro terá ganho o título de rei para seu jarl!

A multidão ficou barulhenta, excitada com o que estava prestes a acontecer. Os dois guerreiros não pestanejaram: armaram-se com seus escudos e machados, e antes que qualquer objeção pudesse ser feita, estavam trocando golpes, sob os gritos de incentivo do povo.

Contudo, na face de Uffe e Bjorn, os dois jarls mais interessados na luta, apenas confusão. Nenhum dos dois esperava por aquilo. Enquanto seus campeões lutavam, os dois nobres se aproximaram e trocaram meia dúzia de palavras sérias.

Tão rápido com havia começado, a luta entre os campeões Horik e Frodi foi interrompida, pois seus senhores entraram no meio e os afastaram.

– Essa não é a forma de resolver isso! – gritou Bjorn.

– Muito sangue já foi derramado entre esse povo – concordou Uffe.

Novo silêncio. Os dois Jarls, que haviam trocado farpas, insultos e provocações o dia inteiro agora pareciam unidos, concordando. Ninguém sabia o que pensar ou dizer sobre aquilo.

– Decidam, então, como quiserem – disse Einar com superioridade.

Os dois jarls estavam prestes a começar outra discussão, quando a voz de um dos guerreiros de Eiðr foi ouvida vindo da multidão:

– Vocês devem decidir isso por vocês mesmos, e não colocar outros para lutar!

– Foi o ancião de vocês, e não nós, que determinou a luta – protestou Bjorn.

O guerreiro respondeu apenas estendendo o cabo de uma espada para Bjorn, entregando uma clara mensagem. O povo ainda estava excitado e queria ver uma luta.

Bjon aceitou a espada que lhe era oferecida e olhou para Uffe, medindo seu possível adversário.

– Não! Isso não é lugar para mais derramamento de sangue – disse Uffe – O mais certo seria...

Mas ninguém chegou a saber o que Uffe considerava como mais certo, pois uma outra voz gritou em meio à multidão:

– Glíma!

Um ruído de aprovação percorreu as pessoas em volta.

– Glíma!

Outra voz repetiu a sugestão, e então outra, outra, e logo era um clamor geral. Os dois Jarls se olharam, como se um perscrutasse a opinião do outro e novamente trocaram palavras sérias em baixo volume. Ninguém nunca soube exatamente o que os dois conversaram naquele momento, mas o fato é que não podiam fugir do clamor popular.


Um duelo de glíma era, pela lei, um jeito legítimo de decidir uma disputa. Provavelmente nunca algo tão importante quanto o título de rei havia decidido por um duelo assim, mas havia uma primeira vez para tudo.

Ao encarar o corpo de Bjorn, Uffe não conseguiu evitar que as palavras de sua mãe viessem à sua mente.

Coma mais desse mingal e beba mais desse ale que a sua mulher faz. Ganhe um pouco de peso, está muito magro.

Bjorn era magro e cheio de músculos ágeis, rápido como uma raposa, mortal com uma lâmina na mão. Mas era mais de trinta quilos mais leve que Uffe, e os dois não iriam usar espadas, machados ou qualquer tipo de arma. Apenas seus braços, sua técnica e o peso de seu corpo.


Como a völva havia previsto, dias antes, a pira com o corpo do rei Eiðr sequer havia terminado de queimar e os jarls já estavam lutando por seu título. Mas nem a völva e nem ninguém ali teria sido capaz de prever que essa importante decisão aconteceria daquela forma.

Os dois combantentes rodearam um ao outro durante um bom tempo. Chegaram a se engajar em combate duas, três vezes, e se afastaram de novo. Bjorn era mais rápido e dispunha de mais fôlego, então usava isso para provocar Uffe, que por sua vez procurava manter a calma e poupar sua própria energia, equanto deixava o adversário gastar a dele.

você não apenas vencerá como terá a lealdade dele, havia dito a mãe de Uffe.

Bjorn avançou para o pescoço de Uffe, mas no último momento trocou sua base e tentou agarrar a perna em vez do pescoço.

Existem muitas formas de coragem, não apenas a daqueles que vão para guerra, ele havia dito para seu próprio filho. Será que ele próprio acreditava nisso?

Uffe permitiu que Bjorn agarrasse sua perna, mas manteve a base firme e num movimento rápido agarrou o adversário pelo tronco, erguendo-o no ar.

O povo assistiu impressionado enquanto Uffe erguia Bjorn apenas para jogá-lo de novo no chão, fazendo-o cair de costas numa raiz de árvore e gritar de dor.

Estava acabado. Bjorn estava no chão e Uffe estava de pé. Mas num gesto de humildade e empatia, Uffe ajudou seu adversário vencido a se levantar, e em resposta Bjorn, ainda curvado pela dor nas costas, ergueu o braço direito de Uffe e gritou para o povo:

– Povo do norte, este é seu novo rei!

***

Na manhã seguinte, Einar conversava novamente com a velha de coluna torta, sempre acompanhada por seus gatos.

– Aconteceu como você disse, Uffe ganhou. E agora?


– Agora começam as reais provações – respondeu a velha. – Por ora, vocês devem festejar e aproveitar mais um período de paz. No próximo ano, um novo inimigo deverá se aproximar. E para lidar com ele, é melhor que Uffe esteja à frente desse povo.





Continua na próxima edição...




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