Salve, vikings e medievalistas!
Estamos alguns meses da edição deste ano do Old Norse e, pra ir entrando no clima, que tal dar uma olhada em como foi a conclusão do último capítulo da saga?
Como vocês sabem, o Old Norse é um acampamento viking que vem desde sua primeira edição, em 2015, contando uma saga, cujo sexto capítulo será apresentado na edição deste ano de 2019. A narrativa deste post conclui o quarto capítulo, conforme acontecimentos durante a edição de 2018.
Caso você não tenha acompanhado os capítulos anteriores desta saga, pode conferi-los aqui:
Capítulo II – Portões de Valhala (continuação) |
Capítulo III – Yule (prelúdio) |
Capítulo III – Yule (continuação) |
Capítulo IV – O Funeral (Prelúdio) |
O texto que vocês estão prestes a ler é a narrativa romanceada de cenas que realmente aconteceram durante a edição de 2017 do Old Norse! Ou seja, as pessoas que estiveram presentes no evento puderam ver em primeira mão esses personagens, acompanhar seus atos e escutar suas falas. Algumas imagens são do Cena Medieval e outras do fotógrafo Daniel Carvalho.
Capítulo IV – O Funeral (continuação)
A notícia havia se
espalhado, como era de se esperar. O rei estava morto e todos que
ostentavam alguma posição ou título vieram, não apenas para
prestar seu respeito, mas também para saber a questão essencial:
quem seria o novo rei.
Um grande acampamento se
formou em volta da vila de Eiðr.
Muitos chegavam
perguntando por Astrid, a filha de Eiðr, e eram logo informados de
que ela e seu marido celta haviam desaparecido. O funeral aconteceria
normalmente, como deve ser, presidido pelo ancião Einar e pela völva
Thorbjörg.
Além disso, percebendo a
oportunidade, Uffe e Bjorn, os dois jarls mais proeminentes, não
perderam tempo em se fazer notar, em conversar com todos e em assumir
posições de liderança naquela situação.
Bjorn, filho de Bjern,
era um jarl guerreiro, líder de numerosas expedições para o
oeste, e agora era reconhecidamente rico.
Uffe, filho de Knut, era
um jarl político, conhecido pelo seu domínio das palavras e das
pessoas. Seu pai, Knut, havia liderado também muitas expedições
para o oeste, mas Knut havia decidido seguir um caminho diferente.
E as diferenças entre
ambos logo ficaram evidentes para todos os presentes.
– Amigos! Irmãos! Essa
é uma situação triste, mas vamos deixar as lágrimas para a noite,
quando a pira de Eiðr queimar. Enquanto ainda é dia, vamos
aproveitar a música e a comida.
E de fato, Uffe havia
trazido um casal de músicos para tocar no acampamento, além de
comida em fartura. Muitas pessoas estavam reunidas naquele momento,
ouvindo as palavras do jarl.
– Isso é um absurdo! –
interrompeu Bjorn, saindo da multidão – Devemos aproveitar esse
momento para planejar novas viagens para o oeste! Estão vendo isso
aqui? – dizia ele levantando o braço, exibindo suas pulseiras e
aneis – é prata e ouro. Do oeste, pra quem quiser ir buscar. Pra
quem tiver coragem!
Uma discussão começou
entre os dois, o clima ficou tenso. A curiosidade fez com que mais
pessoas se aproximassem para presenciar o encontro dos dois jarls
conflitantes.
– Silêncio! – disse
a voz de Einar, o ancião – Esse tipo de questão deve ser decidida
na thing, logo após a queima do corpo.
Nenhum dos dois jarls
teve coragem para constestar as palavras do ancião. O povo se
dispersou. Quem queria ouvir música seguiu Uffe e os músicos em uma
direção, quem queria ouvir histórias de viagem seguiu Bjorn em
outra.
Na clareira restou apenas
o próprio ancião Einar, e ninguém viu quando uma velha de coluna
torta, seguida por dois gatos e com um terceiro no colo, se aproximou
para conversar com o ancião...
***
O dia se transformou em
noite, fogueiras foram acesas. Um barco havia sido construído
especialmente para a pira funerária.
Cânticos fúnebres
soaram pelo acampamento, chamando aqueles que ainda estavam
dispersos. Nos ombros de oito homens o barco foi carregado, seguidos
pela multidão que rapidamente se formou, até o local que havia sido
previamente preparado para a pira. O corpo do rei foi trazido numa
maca, e respeitosamente colocado dentro do barco.
Andando em volta, a völva
fez um discurso, falando para cada uma das pessoas ali presentes,
para todos, e ao mesmo tempo para ninguém. Suas palavras falavam da
vontade dos deuses e do destino dos homens, que dependia sobretudo de
sua coragem.
– Despeçam-se do seu
rei! – concluíu ela, e aqueles que traziam tochas se aproximaram
para entregar o fogo à pira.
Na cabeça de cada um ali
as palavras da völva ecoavam e era impossível não pensar na vida
do próprio rei Eiðr. Era uma história de decadência, de falhas,
mas ao mesmo tempo uma história de coragem. O falecido rei havia
reunido uma quantidade grande de barcos e homens para viajar para o
oeste. Havia voltado de mãos abanando e sem sua filha Astrid, que
havia decidido casar com um dos celtas. Havia recebido a notícia de
que Astrid fora raptada por um jarl rival, e havia com coragem
liderado uma expedição para resgatá-la. Havia conseguido voltar
com a vida de sua filha e com a própria, mas talvez fosse melhor que
tivesse morrido na viagem, pois nada lhe aguardava em seu salão além
de vergonha, tristeza e afogamento na cerveja. E como um bêbado ele
havia morrido.
Aproveitando a
concentração do povo reunido em volta da pira, Einar tomou a
palavra, dando início à Thing, a assembléia de homens livres.
– Eiðr foi lembrado,
Eiðr foi velado e queimado, mas Eiðr está morto. Precisamos agora
de um novo rei!
Silêncio.
– Há entre os jarls
alguém que se considere digno?
Uffe e Bjorn deram um
passo a frente, ficando no centro do círculo, onde a pira ainda
queimava.
Todos ali, incluindo os
dois Jarls, esperavam que a questão fosse decidida por uma votação.
Os próprios Jarls esperavam isso, e por esse motivo cada um havia
trazido tantos homens quanto podia, para aumentar as próprias
chances. E seguindo esse pensamento, todos ali já sabiam que o novo
rei seria Uffe ou Bjorn. Ambos haviam trazido quantidades similares
de homens, mas o contingente de cada um era muito maior do que o de
qualquer dos outros jarls. E considerando que ambos haviam trazido
quantidades similares de homens, a questão então deveria ser
decidida pelos votos dos demais ali presentes: homens do falecido rei
Eiðr e de outros jarls. Todos conheciam Uffe e Bjorn, seus nomes e
seus feitos, e todos haviam tido a oportunidade de vê-los de perto.
Quem escolheriam?
Mas enquanto todos
pensavam nisso, um sorriso estranho brincava no rosto do ancião
Einar, um sorriso que poucos perceberam, mas apenas a völva
Thorbjorn soube interpretar.
– Mesmo os deuses podem
errar, Einar... - disse ela em tom de advertência, de forma que
apenas ele pudesse ouvir.
Mas o ancião ignorou a
advertência da völva.
– Horik, filho de
Hrolf! E Frodi, filho de Ivar! Apresentem-se!
A fala do ancião
surpreendeu a todos, inclusive os jarls. Horik era um dos homens de
Uffe, e Frodi um dos homens de Bjorn. Ambos bons guerreiros,
conhecidos por sua coragem e por sua lealdade aos seus respectivos
jarls.
– Vocês deverão lutar
agora, um duelo até a morte, para que o sangue lave a terra e preste
uma última homenagem ao falecido rei Eiðr! E aquele que tirar a
vida do outro terá ganho o título de rei para seu jarl!
A multidão ficou
barulhenta, excitada com o que estava prestes a acontecer. Os dois
guerreiros não pestanejaram: armaram-se com seus escudos e machados,
e antes que qualquer objeção pudesse ser feita, estavam trocando
golpes, sob os gritos de incentivo do povo.
Contudo, na face de Uffe
e Bjorn, os dois jarls mais interessados na luta, apenas confusão.
Nenhum dos dois esperava por aquilo. Enquanto seus campeões lutavam,
os dois nobres se aproximaram e trocaram meia dúzia de palavras
sérias.
Tão rápido com havia
começado, a luta entre os campeões Horik e Frodi foi interrompida,
pois seus senhores entraram no meio e os afastaram.
– Essa não é a forma
de resolver isso! – gritou Bjorn.
– Muito sangue já foi
derramado entre esse povo – concordou Uffe.
Novo silêncio. Os dois
Jarls, que haviam trocado farpas, insultos e provocações o dia
inteiro agora pareciam unidos, concordando. Ninguém sabia o que
pensar ou dizer sobre aquilo.
– Decidam, então, como
quiserem – disse Einar com superioridade.
Os dois jarls estavam
prestes a começar outra discussão, quando a voz de um dos
guerreiros de Eiðr foi ouvida vindo da multidão:
– Vocês devem decidir
isso por vocês mesmos, e não colocar outros para lutar!
– Foi o ancião de
vocês, e não nós, que determinou a luta – protestou Bjorn.
O guerreiro respondeu
apenas estendendo o cabo de uma espada para Bjorn, entregando uma
clara mensagem. O povo ainda estava excitado e queria ver uma luta.
Bjon aceitou a espada que
lhe era oferecida e olhou para Uffe, medindo seu possível
adversário.
– Não! Isso não é
lugar para mais derramamento de sangue – disse Uffe – O mais
certo seria...
Mas ninguém chegou a
saber o que Uffe considerava como mais certo, pois uma outra voz
gritou em meio à multidão:
– Glíma!
Um ruído de aprovação
percorreu as pessoas em volta.
– Glíma!
Outra voz repetiu a
sugestão, e então outra, outra, e logo era um clamor geral. Os dois
Jarls se olharam, como se um perscrutasse a opinião do outro e
novamente trocaram palavras sérias em baixo volume. Ninguém nunca
soube exatamente o que os dois conversaram naquele momento, mas o
fato é que não podiam fugir do clamor popular.
Um duelo de glíma era,
pela lei, um jeito legítimo de decidir uma disputa. Provavelmente
nunca algo tão importante quanto o título de rei havia decidido por
um duelo assim, mas havia uma primeira vez para tudo.
Ao encarar o corpo de
Bjorn, Uffe não conseguiu evitar que as palavras de sua mãe viessem
à sua mente.
Coma mais desse mingal
e beba mais desse ale que a sua mulher faz. Ganhe um pouco de peso,
está muito magro.
Bjorn era magro e cheio
de músculos ágeis, rápido como uma raposa, mortal com uma lâmina
na mão. Mas era mais de trinta quilos mais leve que Uffe, e os dois
não iriam usar espadas, machados ou qualquer tipo de arma. Apenas
seus braços, sua técnica e o peso de seu corpo.
Como a völva havia
previsto, dias antes, a pira com o corpo do rei Eiðr sequer havia
terminado de queimar e os jarls já estavam lutando por seu título.
Mas nem a völva e nem ninguém ali teria sido capaz de prever que
essa importante decisão aconteceria daquela forma.
Os dois combantentes
rodearam um ao outro durante um bom tempo. Chegaram a se engajar em
combate duas, três vezes, e se afastaram de novo. Bjorn era mais
rápido e dispunha de mais fôlego, então usava isso para provocar
Uffe, que por sua vez procurava manter a calma e poupar sua própria
energia, equanto deixava o adversário gastar a dele.
… você não apenas
vencerá como terá a lealdade dele, havia dito a mãe de Uffe.
Bjorn avançou para o
pescoço de Uffe, mas no último momento trocou sua base e tentou
agarrar a perna em vez do pescoço.
Existem muitas formas
de coragem, não apenas a daqueles que vão para guerra, ele
havia dito para seu próprio filho. Será que ele próprio
acreditava nisso?
Uffe permitiu que Bjorn
agarrasse sua perna, mas manteve a base firme e num movimento rápido
agarrou o adversário pelo tronco, erguendo-o no ar.
O povo assistiu
impressionado enquanto Uffe erguia Bjorn apenas para jogá-lo de novo
no chão, fazendo-o cair de costas numa raiz de árvore e gritar de
dor.
Estava acabado. Bjorn
estava no chão e Uffe estava de pé. Mas num gesto de humildade e
empatia, Uffe ajudou seu adversário vencido a se levantar, e em
resposta Bjorn, ainda curvado pela dor nas costas, ergueu o braço
direito de Uffe e gritou para o povo:
– Povo do norte, este é
seu novo rei!
***
Na manhã seguinte, Einar
conversava novamente com a velha de coluna torta, sempre acompanhada
por seus gatos.
– Aconteceu como você
disse, Uffe ganhou. E agora?
– Agora começam as
reais provações – respondeu a velha. – Por ora, vocês devem
festejar e aproveitar mais um período de paz. No próximo ano, um
novo inimigo deverá se aproximar. E para lidar com ele, é melhor
que Uffe esteja à frente desse povo.
Continua na próxima edição...
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