Salve, medievalistas e leitores de fantasia!
Chegamos ao último conto da lista de cinco finalistas, na coletânea Baladas Medievais, ao Prêmio Strix 2018, da Editora Andross.
E o conto de hoje, pra fechar essa série, é Um bom homem, de Claudia Mina.
Deixamos o conto de Claudia por último pois este autor é o único, dentre os finalistas do Baladas Medievais, que já ganhou um Prêmio Strix antes: o conto Flores em réquiem recebeu, em 2017, a corujinha da Andross como o melhor conto da coletânea Tratado Oculto do Horror, publicada em 2016 pela editora.
Além disso, nós já havíamos publicado um outro conto de Claudia aqui no Cena Medieval: Inocência, que foi originalmente publicado na coletânea Além das Cruzadas, em 2015, também pela Editora Andross.
E, como vocês já devem saber, o Baladas Medievais é uma das coletâneas de contos publicadas pela Andross em 2017.
Cada coletânea tem sua lista de cinco finalistas, dos quais um receberá o Prêmio Strix este ano. No caso do livro Baladas Medievais, achamos legal republicar os finalistas aqui no site, já que a temática muito nos interessa, e principalmente para permitir que mais leitores tenham acesso aos contos antes da premiação.
Então se você não leu nenhum dos contos, ainda dá tempo – a premiação é apenas em outubro. Leia, escolha seu favorito e torça!
Fiquem agora com o último conto dessa lista de finalistas:
Um bom homem
Esta história ouvi de meus pais
A batalha que não foi esquecida
Da orgulhosa nação nunca vencida
Da qual fazem parte os ancestrais
Glória e honra à eterna Numéria
Os guerreiros ardendo em valor
Ganharam com braveza o favor
E acabaram com a fome e a miséria
Mil noites em sangue se ocultou
E o céu se toldou em escuridão
Mas de trevas surgiu um clarão
E o vero fogo os vilões imolou
E então subiu a chama da vitória
E os deuses sorriram desse feito
O fado do nosso povo eleito
E Numéria entrou para a história
Em um palco decorado no alto do terreno elevado, o bardo apresentava sua canção aos nobres do reino de Numéria. Comida e bebida eram fartas para a celebração. Ao findar da música, uma salva de palmas ecoou pelo ar e o bardo curvou-se em agradecimento.
— O que achou do músico? — perguntou lorde Gweddyn.
— Um tanto monótono — respondeu lorde Cellyn.
— Achei uma boa apresentação. A canção tem um bom ritmo.
— Está é com pena daquele bardo — Cellyn tomou um gole de vinho antes de continuar de maneira jocosa. — Assim como tem pena daqueles camponeses ali embaixo.
— Tenho apreço por eles. É muito corajoso serem os primeiros a enfrentar um exército daquele jeito, sem proteção sufi - ciente e sem as melhores armas. Eu vejo honra nisso.
— É apenas a obrigação deles de servir ao rei. Morrer faz parte... Falando nisso, acho que a próxima rodada vai começar.
As trombetas soaram e os nobres procuraram os melhores lugares para assistir à batalha. Para eles, a guerra era um esporte divertido e nunca haviam perdido naquele jogo. Era uma quebra na rotina e tédio que advinha em tempos de paz. Sempre os mesmos jantares e festas; de vez em quando, a eventual caçada. Não havia nada melhor do que a boa e velha arte da guerra. Do ponto privilegiado onde estavam acampados, os nobres assistiam ao exército se mover, enquanto bebiam e contavam piadas.
O exército de Numéria enviou um novo grupo de camponeses para diluir as forças do inimigo, desta maneira, quando os verdadeiros soldados avançassem, estariam descansados e preparados para a verdadeira ofensiva, teriam assim uma vantagem contra os adversários. Os camponeses de Numéria avançaram e alguns tiveram a sorte de estar vivos para continuar na luta.
Chegara a hora do verdadeiro ataque. Os arqueiros se prepararam e suas flechas cobriram os céus. O reino oponente não tinha chances contra os soldados treinados de Numéria. As flechas caíram como uma chuva mortal, incessante e cruel. Não havia sobrado muito do adversário quando a infantaria de Númeria avançou.
— Acho que vai acabar logo — comentou Cellyn de maneira entediada. — Pensei que a batalha duraria mais.
— A guerra não deveria ser entretenimento, são vidas em jogo — Gweddyn repreendeu o outro lorde.
Cellyn se sentiu desconcertado com o tom usado por Gweddyn.
— Eu peço desculpas.
— Tudo bem — disse Gweddyn já num tom mais compreensivo.
— Todos eles são assim. A nobreza de Numéria só quer saber de diversão e ter mais e mais... Não se importam se os outros vão pagar o preço por isso. Mais terras, cobiça... Tanta riqueza e tão desprovidos de compaixão.
— Acha que sou como eles? Não quero que me veja desse jeito. Sei que não sou perfeito, mas ainda posso mudar. Preciso que seja sincero. Não quero que me trate como os outros, que me aturam só porque sou da família do rei. A vida que eu levo... As conversas na frente das outras pessoas... Estou cansado de mentir... Só existe uma coisa verdadeira na minha vida... Sabe disso...
Gweddyn permaneceu num silêncio pensativo, longamente cruel.
E então havia chegado o chamado para a batalha no acampamento real, a oportunidade para os nobres cavaleiros de Numéria cavalgarem no encalço dos inimigos que sobravam, divertindo-se com a matança. Mais tarde eles poderiam contar vantagem dos gloriosos feitos de batalha.
— Eu não quero ir — Gweddyn disse. Ele se lembrou das vezes que se deixou levar pela maioria, indo para a batalha, sem se atrever a contrariar. Pensariam que era covardia, ele não se importava. Não mais.
Por um momento, Cellyn não sabia o que fazer. Não desejava deixar Gweddyn para trás, mas também não queria perder a chance de participar. Só mais essa vez, ele pensou. Uma despedida das batalhas, depois deixaria tudo aquilo para trás, levaria uma nova vida, mais honesta, mais justa. — Eu vejo você mais tarde, Gweddyn.
Cellyn e os outros nobres montaram em seus enormes cavalos e seguiram orgulhosamente com os brasões de suas famílias.
A terra tremeu com o peso da tropa. Gritos de vitória se espalharam pelo campo de batalha enquanto eles avançavam sobre os inimigos. Os nobres de Numéria se deleitaram com a sensação de retalhar os corpos com suas espadas e pisotear homens com seus cavalos, inebriavam-se com os gritos de dor e súplica. Unidos, os cavaleiros mataram, deceparam, esquartejaram, esmagaram tudo que havia de vida pela frente, até que o gramado e a terra foram cobertos de sangue e vísceras dos cadáveres que se amontoavam.
Os cavaleiros de Numéria vangloriavam-se da vitória.
Faltava apenas um grupo de inimigos, que fugia em desespero.
Atrás deles, os nobres foram, e, tomados de surpresa, ouviram seus cavalos relincharem em agonia. Haviam caído em uma armadilha.
****
Cellyn olhou ao redor e percebeu a infinidade de corpos jogados sobre o solo lamacento. Alguns estavam mortalmente quietos, outros suplicavam por ajuda. O cavaleiro não acreditava no que havia acontecido. Os cavalos estavam todos condenados, a maioria morta, outros com patas quebradas; alguns haviam caído sobre seus próprios donos, esmagando-os no processo. Tudo era uma sangrenta visão.
De repente, Cellyn ouviu passos se aproximarem e mal teve tempo de reagir ao ataque. Revidou por instinto e o inimigo respondeu com um horrendo grunhido de dor. Cellyn não teve tempo de averiguar se o havia matado ou não, pois recebera um inesperado golpe. Rapidamente, teve seu corpo tomado pela dor. Em um instante, caiu desacordado.
****
Gweddyn montou em seu cavalo assim que viu o que havia acontecido. Ele percorreu o campo de batalha, precisava encontrar Cellyn.
Por algum tempo, tudo que viu foi uma angustiante desesperança, até que reconheceu um brasão em meio ao caos. Parecia ser Cellyn c oberto de sangue. Encontrava-se abaixado e se movia de uma maneira estranha, engatinhando pelo chão.
— Cellyn, estou aqui!
— Onde eles estão? — o cavaleiro perguntou e Gweddyn reconheceu a voz.
— A maioria deles não conseguiu sobreviver...
— Onde eles estão? — Cellyn tateava o chão.
— O que está fazendo? — Gweddyn perguntou, sem entender o estranho comportamento.
— Preciso encontrá-los — Cellyn tocou a própria face.
Gweddyn então percebeu que o rosto do cavaleiro estava desfigurado por um horrível ferimento. Ele ainda tinha um pedaço do nariz, mas a parte superior da face estava em carne viva, com nervos e músculos dilacerados.
— Eu preciso encontrar meus olhos, não consigo enxergar você — Cellyn murmurou de maneira insana. — Eu prometi que o veria — o cavaleiro abraçou Gweddyn e começou a lamentar em desespero, num angustiante soluçar sem lágrimas. O que ele mais queria era ver Gweddyn de novo, aquilo ele nunca conseguiria fazer. — Por favor, me mate. Não posso viver assim.
— Pode, eu vou ajudar você. Sabe que vou, sabe que eu amo você também.
—Você... — Cellyn não conseguia acreditar no que ouvia.
— Espere... — Gweddyn disse repentinamente, de maneira grave. — Espere aqui.
— O quê? O que está acontecendo? — Cellyn sentiu Gweddyn se distanciar. — Não me deixe. Por favor, não me deixe aqui.
Cellyn ouviu passos e mais passos, seguidos de sons de metal contra metal, respirações sôfregas e carne sendo cortada. Ele escutou gritos abafados e um horrível baque de algo pesado caindo no chão.
— Gweddyn! — Cellyn gritou. — Onde você está? — o homem começou a andar a esmo, tropeçando nos corpos no chão. — Gweddyn! — Cellyn continuou gritando, mas o outro cavaleiro nunca mais respondeu. — Eu vou mudar, serei um bom homem... — foi o que os reforços de Numéria ouviram quando encontraram Cellyn ajoelhado no campo sangrento.
Claudia Mina é autor de diversos contos publicados em diferentes coletâneas. Recebeu o prêmio Strix em 2017 por seu conto Flores em Réquiem, publicado na coletânea Tratado Oculto do Horror, também da editora Andross. Também em 2017 publicou o livro A Raiz da Maldade, pela editora Autografia.
Imagem de capa deste post por: Renata Saito
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