Salve, vikings e medievalistas!
Talvez você se lembre de ter lido por aqui sobre o Old Norse, um evento carioca que celebra a cultura viking e em 2017 teve sua terceira edição, muito elogiada por nós e pela maioria das pessoas que estiveram por lá.
Que tal conhecer um pouco mais da história que está sendo contada a cada edição do evento? Numa parceria com a organização, vamos publicar aqui no Cena Medieval os textos dessa Saga relativos às edições anteriores, e ajudar a produzir os próximos!
Historicamente, as Sagas são narrativas medievais, produzidas principalmente na Islândia, contando feitos de grandes personagens históricos, misturando fato e mito.
Jansen, o Saxão, um dos organizadores do Old Norse |
O Old Norse é um evento com a proposta de proporcionar aos convidados uma imersão na cultura viking, e além disso tem a pretensão de criar uma nova Saga, com personagens e acontecimentos completamente fictícios, e permitir que os convidados do evento presenciem e participem da construção dessa narrativa.
Cada edição conta um capítulo dessa história. Até agora tivemos:
2015 - Capítulo I - O Casamento |
2016 - Capítulo II - Os Portões de Valhalla |
2017 - Capítulo III - Yule |
O texto que vocês estão prestes a ler, escrito por Bruno O'Shea Machado, é um conto que apresenta os personagens principais e sua situação imediatamente antes da primeira edição do evento, que aconteceu em 2015. Nos próximos meses pretendemos publicar aqui no Cena Medieval textos que continuam essa história, em preparação para a quarta edição, que deve acontecer agora no meio de 2018.
Permitam-se conhecer esses personagens...
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"Em uma guerra, o amor se esvai..."
Essas foram as ultimas palavras que meu pai proferiu antes de embarcarmos para a Irlanda.
Em uma guerra, o amor se esvai...
Era o ano de 820. Nosso exército estava glorioso. Incontáveis navios deslizavam suavemente pelo mar, parecendo não sentirem a força das ondas que quebravam impiedosamente em suas madeiras fortes. Estávamos cruzando o mar para saquear, para conquistar.
Meu nome é Astrid, sou uma guerreira. A única em nossa família e ouso dizer que sou a única onde eu nasci. Fui criada para a guerra enquanto as outras meninas fiavam lã.
Meu pai sempre me contava histórias sobre essa ilha, onde os guerreiros eram selvagens que constumávamos chamá-los de Skrælings; um povo onde até a mais frágil das mulheres era considerada uma ameaça. Eu nunca deixei que essas histórias me amedrontassem, afinal, quão perigosos eram selvagens que mal tinham panos para cobrir sua nudez? Para mim, era uma viagem com um objetivo claro e definido, me parecendo bastante simples.
Mas as nornes tinham planos para meus fios...
Desembarcamos. A água desse lugar era a mais clara que vi em todo esse tempo que venho navegando. Animais cortavam a floresta logo em frente, completamente alheios a nossa presença.
- Cuidado com as armaduras! Maldição, não sabem que essa água é um veneno para o aço! - Meu pai, o Rei Eiðr, ralhava com os homens a distância. Era um homem forte, forte demais se comparado aos outros guerreiros. Tinha olhos azuis que eram cerrados devido a longa exposição ao sol do mar.
- Astrid, olhe para aquela árvore - Meu pai apontava para um grande carvalho bem a nossa frente. - Não há maior sinal de que nossa vitória está perto.
- Acho que nem precisamos da ajuda dos deuses. São selvagens, senhor. O que irão fazer contra espadas e machados, irão nos espetar com ferramentas da fazenda? - Debochei, acreditando no que seria uma conquista pífia.
- Se você realmente acha que os Skrælings são fazendeiros, está enganado. Aqui não é a Nortúmbria. Conhecemos pouco dessas terras e do que esperar. Siga os sinais dos deuses, Astrid. Sempre se guie por eles e não existirá dúvidas em seu caminho. - Meu pai sempre dizia que um homem que sempre segue os caminhos dos deuses é um ser completo. Eu não pensava assim, achava que os deuses brincavam com nossas vidas como uma criança brinca com formigas, mas fiquei quieta. Não precisava de uma discussão sobre deuses com meu pai nesse momento.
Havia uma vila perto de onde desembarcamos e decidimos montar nosso acampamento por lá. Os poucos habitantes que não fugiram com nossa chegada nos ofereceram suas casas e o pouco de alimento que possuiam estocados. O que iriam fazer contra guerreiros? Mas não os provocamos e deixamos que levassem seus tesouros para outro lugar.
Nessa mesma noite, nosso ancião Einar se preparava para nosso sacrifício antes da guerra. Todos os guerreiros se reuniram em uma clareira, afastado de nosso acampamento. Animais diversos foram trazidos para a clareira. Einar era um velho, mais velho do que todos os homens que já conheci, mas não havia pessoa mais sábia do que ele. Minha mãe constumava dizer que ele era Óðinn disfarçado, claro que era história para assustar crianças, mas por algum motivo eu sentia a força do Pai dos Deuses nas palavras de Einar:
- O sangue será vertido! A carne será cortada! Sangue para as criaturas de baixo, carne para os Lordes de cima! A vitória requer sacrifícios. Rei Eiðr, o que quer dos deuses? - Então, meu pai se aproximou de Einar, vestindo apenas sua parte de baixo da armadura. Seu peito nu mostrava o que a guerra fazia com os homens.
- Quero essa terra, quero dar um lar aos meus iguais. Quero fartura, e que cada homem aqui tenha seu pedaço de terra para viver. - Ao final de suas palavras, meu pai tomou seu machado e, com um só golpe, derrubou um javali. - Óðinn! - Meu pai gritava, olhando para o céu. - Óðinn!
De mão em mão, hidromel, cerveja e comida passaram a todos. Uns ficaram bêbados, como eu, outros se pouparam para o derramamento de sangue de amanhã.
E assim, os homens do norte estavam preparados para a guerra.
Partimos logo pela manhã em direção a nosso objetivo. Segundo meu pai e outros guerreiros importantes, para assegurarmos nossa vitória, precisaríamos tomar posse de 3 pontos principais nessa região: o porto, onde se concentrava o fluxo de comércio, a cidade de Brega, onde poderíamos nos fortificar e a ponte de Blathmac, para controlar o acesso à cidade.
Os campos ao redor dessa região eram completamente verdes. O sol forte estava sob nossas cabeças, permitindo apreciar a beleza desse lugar misterioso e tão diferente de nossa terra natal. Havia pássaros revoando uma pequena floresta a nossa direita e a nossa frente, colinas intermináveis onde mal conseguíamos ver o que se escondia por trás delas.
Foi então que eu o vi.
Talvez pelo sol estar forte, eu o enxerguei como um gigante, imponente e invencível. Ele era uma cabeça maior do que nosso maior homem, cabelos e barba negra. Vestia uma cota de malha e repousava sua espada em seu ombro. Seu exército estava atrás e eu não pude contar, mas pelo olhar de meu pai, não era algo bom.
- É maior do que eu esperava... - Meu pai cerrou seus olhos, algo que eu nunca tinha visto ele fazer.
- Precisaremos conversar.
Meu pai tomou a frente e se pos a andar devagar. Sua espada refletia o sol e eu temia que os irlandeses fossem cruéis a ponto de dispararem flechas contra ele. Mas isso não aconteceu.
O chefe do exército irlandês também caminhou em direção a meu pai e junto dele estava o gigante. Por alguma razão eu senti que deveria estar do lado do meu pai e me vi correndo para alcançá-lo.
- Pai. - Não o encarei, apenas quis que soubesse de minha presença ao lado dele.
- Eu esperava isso de você, Astrid. Fico orgulhoso de não precisar pedir sua companhia. - Sorri, escondido. Não precisaria de mais nada, poderia derrotar todos eu mesma. Eu era a filha de Eiðr e nada poderia ao menos me tocar.
Chegamos ao ponto mais alto da colina. O chefe irlandês e seu filho estavam esperando com suas espadas fincadas no chão. Seus olhares eram de puro escárnio e desprezo com nossa presença diante deles e isso me fez borbulhar de ódio. Instintivamente, toquei o cabo de minha espada.
- Meu nome é Ulaidh mac Conaing e este é meu filho Earnán mac Ulaidh. Fale, porco do norte, o que pensou quando saiu de sua terra imunda para sujar minha ilha com sua presença fétida? - Meu impulso foi cortar sua garganta e beber de seu sangue, mas tudo nesse momento era questão de saber lidar com os insultos.
- Honra-me em conhecê-lo, Ulaidh, filho de Conaing. Retire seus homens e eu pouparei sua terra de conhecer seu sangue derramado. - Neste momento, eu senti o olhar de Earnán pela primeira vez. Era como uma lança vindo em minha direção, não entendia como isso me afetava.
Não houve acordo entre os chefes. Dava pra ver nos olhos do meu pai a preocupação que se sentia antes de uma guerra ser travada; não tínhamos muita chance mas o que faríamos? Não chegamos tão longe para fugirmos como cães.
Nos colocamos em posição. Fiquei do lado do meu pai e o fitei com amor, porém foi um erro...Era uma guerra e não havia espaço para compaixão. - Astrid. Toque seu escudo, lembre-se do golpe por baixo dele. Abaixe e estoque, puxe e contra-ataque. - Definitivamente ele estava preocupado.
- Sim, senhor.
Na guerra o amor se esvái.
Foi uma luta interminável. Homens que eram 30 anos mais velhos que eu estavam chorando, olhando para os céus e esperando seu destino. Alguns sorriam por estarem em uma parede de escudos e tudo se passou lentamente.
Meu pai e o chefe Ulaidh lutavam ferozmente, metade dos homens de cada exército estava ferido. Aquele cheiro de sangue, excremento e medo...Então o fitei pela segunda vez.
Dessa vez não desviei o olhar.
O ataquei com todas as minhas forças. Nos distanciamos do campo de luta entre golpes e xingamentos. Só pensava em matá-lo, cortar sua cabeça e usá-la como troféu, mas não foi isso que aconteceu.
- Desista, mulher. - Earnán disse sorrindo. Estávamos exaustos e eu precisava acabar logo com isso, porém por descuido acabei tropeçando. Earnán pos sua espada em meu pescoço, pressionando a ponta.
- Não.
Então, ele se ajoelhou, jogou minha espada para longe e me beijou. De alguma forma eu não senti ódio, nem repulsa...Por alguma razão aquilo estava certo, e me senti a pior das pessoas neste momento.
O instinto nos consumiu nesse momento. Estávamos longe de tudo e isso nos deu mais coragem ainda. Queria sentir a pele dele, queria ver seu corpo, precisava disso. Era algo intenso, não era normal, não era certo.
Fomos violentos um com o outro, como se tudo que quisessemos nessa hora era acabar com esse desejo...E acabamos. Olhamos um para o outro e esse desejo se transformou em profunda admiração; mesmo saíndo do ódio, mesmo saíndo da morte. E eu sabia que queria ficar com ele por toda minha vida.
Ficamos na floresta por 2 dias, juntos. Bebíamos água do rio quando tínhamos sede e caçávamos quando sentíamos fome. Percebi que fui mais feliz nesses dois dias do que fui minha vida inteira e não queria por a perder isso. Teria que falar com Earnán sobre o que eu sentia, mas eu nunca fui boa nisso: me dê uma espada e arranco cabeças, mas não me dê um coração, pois não sei o que fazer. Hesitei:
- Earnán. - Minha mão suava, minha cabeça girava. - Preciso lhe dizer...Lhe dizer uma coisa.
- Quer se casar comigo, Astrid? - Earnán sussurrou em meus ouvidos. Eu fiquei parada, olhando aqueles olhos tão profundos e tão cheios de vida. Apenas o abraçei, com toda minha força e sussurrei de volta:
- Sim.
Iremos desafiar tudo, iremos contra nossas famílias, nossa guerra, nossas conquistas...Iremos sofrer, chorar, decepcionar pessoas...Mas não há outro homem no mundo com quem eu queira dividir minha vida, meu choro, meu sorriso, minha bebida e meu amor.
Na guerra, o amor se esvai...
...E nasce novamente.
Continua...
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