quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Inocência, um conto de Claudia Mina

A mão do jovem segurava a adaga que rasgava o peito do homem mais velho — seu rosto se contorcia em uma expressão de extrema agonia. Sangue espesso, vermelho escuro, escorria pela pele. O rosto do agressor também demonstrava dor e amargura; um demônio de face horrenda e asas retorcidas o mordia com presas afiadas. O jovem Paolo assistia enquanto seu mestre acrescentava detalhes à pintura, observando os olhos escuros e miúdos do velho pintor voltados com extrema atenção à tela.


Francesco Giacometti era um artista renomado, um dos maiores mestres de seu tempo. Muitos comentavam a seu respeito, pois admiravam seu talento ao mesmo tempo em que o viam com certo temor. Diziam que ele fizera um pacto com o demônio para ganhar habilidades geniais de pintura, além da vida eterna. Francesco era realmente muito velho, seus cabelos eram ralos e completamente brancos; seu corpo, frágil e encurvado, mas, mesmo assim, trabalhava em suas obras com vigor inabalável. Paolo não acreditava nas histórias que inventavam sobre seu mestre; no entanto, achava seus trabalhos um tanto assustadores, por costumarem retratar o purgatório e o inferno.

De súbito, Francesco afastou o pincel da tela, com sua face se contorcendo numa expressão abatida. Tentou retornar à tarefa, mas não tinha mais forças. Deixou o pincel cair e colocou as mãos em torno da garganta, gemendo em agonia. O jovem correu na direção de Francesco, mas não foi rápido o suficiente. O velho mestre caiu no chão e, quando Paolo enfim o alcançou, ele já não se mexia. Alarmado, o jovem viu o olhar estático de seu mestre, que já não respirava mais.

— Está morto — constatou, dando alguns passos para trás, com medo. Não sabia o que fazer. Foi então que se lembrou de um fato que acontecera na noite anterior e concluiu: — Foi envenenado.

Paolo conhecia os venenos. Seu mestre o ensinara a respeito. Além de pintor, Francesco se dedicava ao estudo de várias substâncias. Tinha uma sala escura, cheia de livros e objetos estranhos onde praticava experimentos. Paolo não gostava de ir lá, embora seu mestre insistisse para que ficasse e aprendesse. O velho artista era recluso, não tinha muitos amigos, e só aceitara Paolo como aprendiz. O jovem não sabia o porquê, mas Francesco parecia ter afeição por ele, como se o considerasse o filho que nunca tivera e para o qual queria ensinar o que sabia.

Paolo era um jovem tímido e franzino, com cabelos castanhos que caíam desajeitadamente em seu rosto. Queria ser pintor e admirava o trabalho de Francesco. Juntara toda sua coragem ao pedir para se tornar aprendiz do pintor e foi com grande surpresa que se viu aceito. Por um momento em sua vida acreditara que seu sonho se tornaria realidade... Até ver o mestre caído no chão. Paolo verificou o corpo de Francesco, checou o pulso, observou a coloração da pele — que ganhara um tom azulado —, abriu a boca do pintor e sentiu o cheiro incomum que o hálito exalava. Também notou que os olhos estavam avermelhados. Concluiu que, definitivamente, fora envenenado.

O jovem fechou os olhos do mestre e cobriu o corpo com uma manta. Perguntou-se o que deveria fazer. Se chamasse os guardas, não acreditariam que seu mestre fora assassinado, e deduziriam que havia morrido de morte natural, por causa da idade avançada.

Na noite anterior, Paolo fora dispensado mais cedo. Por algum motivo, o jovem não conseguira dormir e saíra de seu quarto em busca de ar fresco. Ao passar perto dos cômodos do mestre, ouvira uma voz conhecida conversando com ele — pertencia a Domenico Ravagnani, um dos poucos amigos de Francesco também interessado naquelas artes secretas de que o mestre tanto gostava. Domenico era um homem de meia idade, de corpo esguio e atlético, cabelo grisalho e bigode preto. Paolo não gostava dele. Não sabia o motivo, apenas não gostava. O jovem viu ambos bebendo e conversando aos sussurros, com um entusiasmo contido, como se estivessem segredando algo muito valioso.

O jovem aprendiz tomou uma decisão, e dirigiu-se à casa de Domenico.

As ruas já estavam escuras e Paolo se esgueirava pelas sombras a fim de não visto. Passou por ruelas que serpenteavam pela cidade e chegou à residência de Domenico. Parecia loucura o que estava fazendo, mas a morte de seu mestre lhe despertara uma vontade cega de procurar respostas.

O jovem estudou a fachada, sabendo que não poderia entrar pela frente. Ao lado da casa havia um muro que poderia tentar escalar e alcançar o segundo andar, mas decidiu dar a volta e tentar uma entrada pelos fundos. Escalar não era seu forte; acabaria se estatelando no chão. Nos fundos havia uma porta... trancada, mas logo encontrou uma janela alta e estreita que poderia abrir. Ergueu-se, apoiando-se no parapeito, e forçou a janela, que se abriu. Tomando um pouco mais de força, impulsionou seu corpo para cima e se esgueirou pela passagem estreita. Logo entrou na casa de Domenico. Andou sorrateiramente pelos corredores escuros e viu o brilho tênue de uma vela num cômodo. Tentou bisbilhotar através da fresta deixada pela porta entreaberta, mas ouviu as dobradiças rangerem perigosamente... A porta se abriu. E lá estava ele, Domenico. O homem mais velho pareceu surpreso por um momento, mas logo sua expressão se suavizou.

— O que o trás aqui, meu jovem? — Domenico perguntou calmamente.

— O que você fez com meu mestre?

Domenico franziu a testa.

— Do que está falando?

— O mestre está morto.

Domenico permaneceu em silêncio por um momento, como se tivesse virado uma estátua impassível.
— Morto? — sussurrou por fim. — Eu sinto muito.

— Eu vi você com ele ontem à noite.

Paolo sentia o punhal que trazia escondido entre as vestes. Se fosse preciso...

— Sim, nós conversamos, como sempre fazíamos.

— O livro...

Paolo pensou em voz alta, viu o livro no qual o mestre fazia as anotações sobre seus experimentos; jazia em uma mesa de estudo, no canto daquela sala.

Domenico olhou na direção em que o jovem olhava.

— Ah! O livro. Sim, Francesco me emprestou. — Paolo sabia que era mentira, porque seu mestre nunca emprestaria o livro que continha seus maiores segredos. — Meu jovem — Domenico sentou-se à mesa larga ao centro. — Você deve estar cansado. Sente-se e coma comigo. — Paolo viu uma travessa com assados de aparência apetitosa no centro da mesa. — Podemos conversar com mais calma? — Domenico perguntou. — Tenho um vinho muito bom. Gostaria de provar?

— Não — Paolo disse, apreensivo.

— Uma pena. — Domenico começou a comer tranquilamente e Paolo continuou em pé, observando-o. — Seu mestre e eu éramos grandes amigos. Uma pena que ele... — Paolo reparou que a expressão de Domenico estava ficando diferente. — Uma pena que ele... — O homem tentou continuar, mas suas palavras soavam entrecortadas e desconexas. — O efeito... é diferente do que eu imaginava... O efeito... — Ele parecia estar ficando sem ar e seu rosto se contorceu numa expressão de agonia. — Ele mentiu... Ele mentiu... — Seu corpo tombou para frente e seu rosto caiu sobre o prato de comida. Domenico continuou balbuciando palavras, começou a gemer e então ficou imóvel.

Paolo assistiu à cena, paralisado. Só conseguiu se mover minutos depois. O jovem se aproximou do corpo do homem e viu que estava morto. Paolo não podia permanecer ali. Precisava ir embora. Depressa. Caminhou rapidamente até a mesa onde estava o livro do mestre e parou por um momento para ver a página marcada. Nela estava escrito: Elixir da Longa Vida.

— Tolos... — Paolo disse. — Era isso o que procuravam?— O jovem se perguntava como homens como aqueles poderiam acreditar em tal coisa, quando ouviu uma batida forte na porta. Eram guardas, chamados por vizinhos que testemunharam o jovem se esgueirar para dentro da casa de Domenico.

Paolo sabia que tinha de fugir. Correu para a janela por onde entrara e pulou para fora. Tentou escapar pelas ruelas estreitas, mas se viu cercado.

Eu também sou um tolo... Paolo pensou, enquanto era levado pelos guardas. Logo encontrariam o corpo de Domenico e de seu mestre Francesco. Como o jovem poderia explicar aquela situação...?



Este conto foi publicado originalmente na coletânea Além das Cruzadas, publicada em 2015 pela editora Andross.


A Andross é uma editora especializada na publicação de coletâncias de contos dos mais variados gêneros. Dentre as coletâneas publicadas neste ano de 2017, está o livro Baladas Medievais, sobre o qual já falamos bastante aqui no site, e no qual a autora Claudia Mina também está presente.

Claudia Mina é autora de diversos contos publicados em diferentes coletâneas. Recebeu o prêmio Strix em 2017, por seu conto Flores em Réquiem, publicado na coletânea Tratado Oculto do Horror, também da editora Andross. Também em 2017 publicou o livro A Raiz da Maldade, pela editora Autografia.

Imagem de capa deste artigo: O Artista Em Seu Estúdio, de Carel Fabritius


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