“…no
ano de mil trezentos e […] de nosso Senhor Jesus Cristo, eu prior
[…] da ordem dos dominicanos, durante cinquenta dias interroguei à
respeito das acusações de ser um lobisomem, compactuar com
demônios, andar nu pelos campos e se alimentar de […] durante as
luas cheias o homem que se identificou como Jacques, morador da vila
de […], na Occitânia…”
O
professor João Alves Monteiro se afastou do fac-símile e esfregou
os olhos cansados, aquele documento estava lhe dando muito mais
trabalho para traduzir do que ele podia imaginar quando o encontrou
nos arquivos da BNF.
As letras unciais, apesar de serem típicas do
período, estavam escritas com pouca firmeza, havia diversos erros no
texto em latim, ambos sinais que indicavam que o escriba não era bem
alfabetizado e aparentemente os fólios haviam sido bem maltratados
antes de, por alguma forma, irem parar numa estante da biblioteca.
Vendo que aquela noite de trabalho estava finda, o professor se
levantou de sua cadeira apagou a luz que incidia diretamente sobre a
sua escrivaninha (ele preferia trabalhar com cópias físicas em
papel, já que o computador sempre lhe dava fortes dores de cabeça)
e foi se deitar, pois já passava das duas da manhã. Aquela noite
passou sem sonhos, mas mais de uma vez o professor acordou
sobressaltado, certo de ter ouvido algo, apesar do silêncio que
reinava na parte exterior de seu apartamento.
Acordou
novamente de sobressalto; O despertador já havia se desligado (ou
ele o havia desligado sem perceber?) e ele já estava mais de duas
horas atrasado, aquilo atrapalharia seu planejamento. Não havia
tempo agora para se lamentar, mas teria de ficar para mais tarde sua
ida à biblioteca, ele tinha uma aula a dar. No fim do dia, após ter
exposto longamente sobre diversos aspectos das ordens religiosas
medievais para uma sala de graduandos que parecia não se importar
com nada além da passagem do tempo (ele aprendera a ignorar muitos
dos sinais típicos dos alunos, mas ainda lhe incomodava ver alguns
destes olhando para o relógio da parede ou para as janelas com o
olhar aflito de um condenado à morte). Decidiu terminar mais cedo a
aula, e dispensando o mais rápido que pôde aqueles poucos que
pareciam interessados em algo mais do que a nota do fim o semestre e
partiu em busca de seu colega de departamento.
O
professor Roberto Schilmann era a imagem viva de um pesquisador
desses que aparecem em filmes noir: baixinho, com óculos
fundo de garrafa, barba farta e grisalha, quase branca, além de
estar perdendo os poucos fios de cabelo que ainda possuía no alto da
cabeça. Sempre andava vestido com calças de terno e camisas e
quando tinha que se apresentar em bancas, fazia questão de por
gravata e terno. João não podia negar o afeto que sentia pelo
antigo professor e agora colega que, muito solícito, o ajudava
sempre que podia da melhor forma, isso desde os tempos em que ele não
passava de um aluno brigando por uma iniciação científica. Na
época, ele bem quis que seu orientador fosse o professor Schilmann,
mas seu interesse específico pela idade média acabou
impossibilitando a orientação, já que o professor era especialista
em antiguidade, sobretudo fontes romanas e escrita funerária latina.
Era
justamente essa sua especialidade que trazia agora João à sala de
seu antigo professor, devido não apenas à sua idade, mas também a
todos os anos de préstimos à universidade e a sua importância como
pesquisador (mais de uma vez ele fora convidado para assumir uma
cadeira em universidades como Yale, Cambridge e Sorbonne, mas segundo
ele mesmo, ele era brasileiro demais para viver num mundo anglo
saxão, e bem humorado demais para aguentar os franceses, sempre
seguido de uma piscadela cúmplice) o professor Schilmann era um dos
únicos que possuía uma sala somente para si, a qual abarrotava com
livros de todos os tipos, além de algumas dúzias de manuais de
paleografia latina, medieval e até mesmo do séc XVI (ele
considerava essas apenas um hobby, mas era certo que nenhum outro
professor na academia era capaz de traduzir com tanta facilidade e de
tantas línguas diferentes qualquer espécie de documento quanto o
professor Schilmann). Foi no meio dessa bagunça organizada que o
professor João encontrou seu antigo mestre:
— Boa
tarde, professor o senhor está muito ocupado?
Uma
pequena cabeça branca aparece do meio de uma pilha de livros num
canto, (o professor, entre suas muitas manias, gostava de trabalhar
sentado no chão) e espia um tanto descontente:
— Ora,
se não é você João! Entre, por favor! Por um momento pensei que
fosse algum aluno, pela forma como me interpelou da porta… — Era
famosa a pouca paciência que o professor Schilmann tinha com alunos
que o procuravam para pedir revisão de notas ou que ele estendesse
os prazos de entrega de seus trabalhos – Mas, me diga, o que
precisa? O último manual que lhe recomendei foi útil? Excelente
trabalho sobre as fontes da baixa idade média não?
— Sem
dúvida professor, mas devo admitir que ainda estou penando para
traduzir algumas partes do manuscrito. É estranho como, apesar de se
tratar de um documento eclesiástico e sobretudo de uma ordem como a
dominicana, o texto é cheio de erros ortográficos e tem um latim um
tanto quanto esdrúxulo…
Aquilo
era a mais pura verdade. Apesar de não ser a especialidade de João,
ele já estava suficientemente familiarizado com o processo da
paleografia de forma que, no geral, suas traduções corriam bem. Se
não fosse o teor daquele manuscrito, provavelmente ele o deixaria de
lado, pelo menos por algum tempo.
— Bem
isso pode se dever ao lugar de onde o manuscrito veio, não foi você
que me disse que ele é occitano? Na idade média aquilo era o fim do
mundo para os franceses e provavelmente explicaria a escolha de um
grupo menos qualificado para tratar de um possível caso que
dependesse da intervenção pontifica…
— Hum,
pode ser… mas ainda assim é estranho, é como se o caso fosse tão
pouco importante que ninguém queria lhe dar atenção… — ou tão
importante que tentaram esconder sob um véu de desimportância,
pensou consigo o professor, mas seus muitos anos no meio acadêmico
lhe ensinaram que teorias de conspiração e pensamento
excessivamente fora da caixa não eram lá muito bem vistos. Afinal,
não eram tantos os relatos de licantropia, não apenas na França,
mas no mundo medieval como um todo, aquilo João podia alegar com
bastante propriedade já que sua vida acadêmica fora voltada para
estudar relatos dessa natureza durante toda a idade média.
— Bem,
o que quer que seja você precisa primeiro terminar a transcrição
para poder depois formular qualquer espécie de teoria, sim? Quando
terminar traga-a para mim que eu darei uma olhada para você. —
Dito isso o professor voltou a se escarafunchar no que quer que
estivesse fazendo, o que não deu tempo a João de realmente lhe
pedir o que havia vindo pedir: uma ajuda naquele momento e não
apenas quando terminasse a tradução, que vinha sendo sua nêmeses
nesses últimos cinco meses.
Ainda um
pouco desconcertado com a facilidade com que seu antigo professor se
desembaraçou de sua presença para continuar sua pesquisa, fosse ela
qual fosse, o professor Monteiro se encaminhou para o metrô,
decidido a não pegar no manuscrito por, pelo menos, uma semana.
Seria bom desanuviar a cabeça um pouco. Às vezes se afastar do
objeto de estudo lhe dava uma nova visão sobre este e, de qualquer
forma, com o fim do semestre se aproximando seria bom ele preparar as
provas e corrigir os trabalhos já entregues.
Ao entrar
no vagão de trem, João procurou ficar longe de um grupo de alunos
que tagarelava alegremente sobre festas e bebedeiras, e habilmente
passou pelo grupo sem ser notado. Não que ele desgostasse de sua
profissão ou tivesse qualquer espécie de desdém pelos seus alunos,
mas ele já notara que a grande maioria destes se sentia
desconfortável quando davam de cara com um professor fora da sala.
Ele ainda se lembrava da frase tímida que uma de suas melhores
alunas um dia teve coragem de soltar: — “Voltar com o senhor
no metrô, professor, me faz sentir como se estivesse levando um
trabalho difícil para entregar amanhã e que eu nem comecei a fazer”
– daquele dia em diante o professor procurou ao máximo não criar
essa estranha sensação de desconforto que parecia ser partilhada
por todos os alunos. Ele encontrou um lugar para sentar no trem ainda
semi vazio e acabou adormecendo.
Sonhou
que estava corrigindo as provas do fim de semestre, porém quando
olhava suas anotações, estas estavam no estranho latim que ele vira
no manuscrito e quando ele tentava descobrir o que estava escrito o
professor Schilmann, vestido como um prior dominicano, o repreendia
por sua curiosidade. Acordou sobressaltado com o som do apito da
porta e meio correndo meio andando, saiu esbaforido pela porta afora
antes que essa se fechasse em suas costas.
Um cheiro
forte de cachorro molhado atingiu suas narinas como um soco ao abrir
a porta, o professor se preparou para dar um esporro em suas filhas,
ele já dissera que não era para deixar o Atlas… – João
Monteiro estancou ao se dar conta da realidade ao seu redor: seu
dogue alemão, Atlas, havia morrido há mais ou menos um ano, e pouco
depois aconteceu sua separação de sua primeira mulher. Suas filhas,
Elizabeth e Karina, não o visitavam havia semanas — em parte
devido aos seus muitos compromissos em parte porque as meninas não
ficavam muito à vontade no pequeno apartamento do professor.
João
fechou a porta e se sentou por um momento ainda confuso, acreditando
estar cansado e um pouco desnorteado por ter saído esbaforido do
metrô, se serviu de uma boa dose de café, que ele esquentou no
micro-ondas, e com mais calma procurou sentir novamente o cheiro que
lhe trouxera a vívida lembrança. O cheiro, ou pelo menos o
resquício dele, continuava por lá, mas nem de perto lhe dava a
mesma sensação que tivera ao abrir a porta. E o que mais o
intrigava era qual seria a origem deste. Será que haviam ilusões
olfativas? João nunca havia ouvido falar disso, mas não duvidava
que sua mente cansada pudesse lhe pregar peças como essa.
Decidiu
que tiraria o restante do dia para descansar, tomou um banho,
preparou um jantar rápido – na verdade comeu um lanche, como fazia
na maioria das noites após a separação — sentou um pouco em
frente a televisão e até mesmo cogitou ligar para suas filhas,
porém já era tarde e nas sextas feiras elas costumavam sair com
seus amigos ou, quem sabe, até mesmo namorados, afinal ambas haviam
puxado a beleza da mãe, mas ele, apesar dele não ser feio, era um
homem bastante comum, e ambas já estavam na adolescência… O
pensamento irritou o professor que decidiu que era melhor se deitar
em vez de ficar pensando bobagens sem sentido...
...a sala
era bastante fria e escura, João conseguia distinguir um homem
seminu, apenas com os calções típicos dos camponeses, agrilhoado à
parede a alguns metros de si, à sua frente estava uma peça de
pergaminho claramente reutilizada. Por um momento ele teve certeza
que fora ele quem ficara horas raspando o couro para deixa-lo limpo o
suficiente para ser reutilizado, Schilmann estava a seu lado,
recitando o pai nosso e o Te Deum em latim, João tentava
falar, mas sua voz não saia e ele parecia estar congelado na
cadeira, enquanto isso o homem na parede estava sendo marcado com
ferros quentes.
O
professor lutava para sair do lugar, ele queria gritar para que
aquela loucura parasse, mas sua voz não saia. Acordou sobressaltado,
coberto em suor e escutando os cães da rua uivando para não se sabe
o quê…
***
As duas
últimas semanas haviam sido muito melhores do que o professor
poderia ter imaginado. Ter se afastado um pouco do trabalho de
transcrição do manuscrito lhe dera tempo de sobra não apenas para
entregar em dia as provas e trabalhos de fim de semestre como ainda
visitar suas filhas no fim de semana – apesar do clima ser sempre
estranho quando as meninas estavam junto dele e da mãe, João
procurava relevar pelo bem delas, apesar de sua ex-mulher não ter
tantos escrúpulos assim. A separação e o motivo dela (sua ex tinha
certeza que ele havia tido um caso com uma de suas orientandas) ainda
criavam um claro clima de animosidade. Por um curto período o
professor Monteiro não sentiu sobre si a carga que vinha sentindo
desde que decidira estudar aquele manuscrito.
É que,
até então, ele jamais sentira-se daquele jeito ao estudar nenhum
dos manuscritos; Mesmos os mais detalhados e extensos interrogatórios
medievais não haviam lhe perturbado tanto e, apesar de não serem
tantos nem tão terríveis quanto a maioria das pessoas imagina, a
descrição dos diversos suplícios aos quais os interrogados eram
submetidos normalmente eram suficientes para incomodar pessoas menos
fortes de estômago.
João
Alves Monteiro construiu sua história acadêmica em cima do estudo
do imaginário medieval e como ele encostava na realidade destas
pessoas. A primeira vez que teve contato com o tema foi através do
livro do aclamado medievalista e micro historiador, Carlo Ginzburg,
chamado História Noturna. Nele, a passagem que mais lhe chamou
atenção foi a que tratava do caso de um homem de nome Thiers que se
dizia lobisomem. O caso impressionou tanto a João que este não mais
conseguiu se desvencilhar do tema, sua iniciação científica foi em
cima da dita passagem, no mestrado estudou o imaginário medieval e
suas transposições para a realidade, no doutorado voltou ao tema da
licantropia e sua relação com o vampirismo no leste europeu e
agora, no pós-doutorado, graças ao manuscrito que encontrara
praticamente intacto e completamente esquecido na Bibliothèque
Nationale de France, ele podia voltar com força ao tema da
licantropia medieval. Apesar de nunca ter revelado no meio acadêmico,
desde sua infância o lobisomem sempre fora o monstro que mais o
intrigava, representando ao mesmo tempo o medo do selvagem e a
vontade do ser humano de ser o predador supremo.
Em casa o
professor Monteiro mantinha uma pequena biblioteca, nada acadêmica,
onde guardava todo e qualquer material sobre esses monstros que ele
pudesse encontrar, fossem livros, histórias em quadrinhos, filmes e
até mesmo RPGs, apesar do professor em si jamais ter sentado numa
mesa com o intuito de jogar. O importante agora é que ele estava
mais descansado, com as energias renovadas para poder recomeçar suas
pesquisas e aproveitando o período das férias de meio de ano, ele
sabia que poderia dar mais atenção ao trabalho que até então o
consumira de um jeito inimaginável.
João
adorava ir à biblioteca da faculdade durante a época de férias.
Apesar dos funcionários sem nenhuma boa vontade, era a melhor época
para visitar suas estantes, já que poucos alunos apareciam por ali.
Exemplo disso era aquele dia: fora ele, apenas mais dois alunos (que
ele reconheceu como sendo um mestrando e um doutorando) andavam quase
como sombras silenciosas entre as estantes de livros. O silêncio era
tão profundo que parecia impossível imaginar que lá fora o sol mal
chegara ao meio dia e que fora dos portões da faculdade o mundo
continuava tão movimentado quanto de costume. Sua visita não lhe
rendera nenhuma grande descoberta, nenhuma passagem que ele não
tivesse já estudado e nenhum livro que não tivesse folheado, mas
ajudara a refrescar sua memória quanto a alguns fatos interessantes
que lhe ajudariam a criar pontes de raciocínio entre estes trabalhos
e sua tese.
Após
várias horas perdido entre as estantes, o professor deixava a
faculdade, no começo do anoitecer. Em sua mochila, alguns livros e
mais algumas xerox de passagens que lhe interessaram, mas que não
compensava pegar o livro inteiro apenas por causa destas. O frio do
meio do ano já começava a se fazer sentir, com um vento úmido e
gelado que passava diretamente por sua blusa de lã. O professor
seguiu diretamente para a estação de metrô e de lá para o centro
da cidade, onde seu pequeno apartamento ficava localizado.
João
sempre amara o centro da cidade, antigo e solene, apesar de muitas
vezes escondido sob camadas de sujeira, pobreza e barulho incessante,
ele ainda conseguia ver naquelas ruas de paralelepípedos, lajotas e
ladrilhos parte do antigo glamour que ali existiram. E neste sentido
a chegada da noite, depois que as firmas, centrais de telemarketing e
os escritórios fechavam e estas pessoas rapidamente voltavam para
suas casas, ajudava ainda mais a trazer de volta a ilusão de um
lugar mais belo, iluminado por lampiões a gás, que agora só
existia na mente daqueles que, assim como o professor, amavam de
forma mais ou menos inconteste aquela parte da cidade. De certa
forma, fora esse estranho saudosismo, apesar de João nunca ter
morado anteriormente no centro da cidade, que o levou, após sua
separação, a comprar aquele pequeno apartamento no centro, isso e
uma vontade quase intestina de se ver longe da vida suburbana que até
então vivera juntamente com sua esposa e suas filhas, num bairro de
classe média alta, onde as pessoas se preocupavam mais com suas
roupas do que com o conteúdo de suas leituras. Um lugar onde ir ao
shopping “desfilar” nos fins de semana era uma espécie de
obrigação social.
Enquanto
divagava sobre assuntos diversos, no curto caminho que ia da saída
do metro até seu apartamento, João notou como as ruas estavam
desertas, o frio certamente espantara a grande maioria das pessoas e
nem mesmo os sem teto, que nesta hora já teriam feito suas camas,
aproveitando cantos e esquinas dos prédios para evitar pelo menos
parcialmente o frio, estavam presentes. Os únicos outros seres com
os quais João cruzara foi um grande bando de cães, que pareciam ter
seguido o professor da saída do metrô até a porta de vidro do
prédio. O professor sempre gostara de cães. Do corredor, antes de
entrar no elevador, deu um ultimo olhar para a matilha que seguira em
frente pela rua. Estranhamente, agora o professor percebeu que, entre
os cães, abaixado e fazendo carinho nestes, havia um homem,
claramente morador das ruas, e que ele olhava diretamente para o
professor. Incomodado pela força do olhar, João se virou e entrou
no elevador.
...novamente
lá estava o professor Schillmann vestido como um dominicano, desta
vez ele recitava o Credo, enquanto um ferro em brasa era encostado na
pele do pobre coitado pendurado na parede pelas correntes de ferro, o
homem uivava como um cão, o que enchia João de terror. Ele queria
pedir para que aquela loucura parasse, mas sua boca estava imóvel,
enquanto seus olhos eram incapazes de se desviar da cena e sua mão
continuava a anotar inexoravelmente sobre o pergaminho raspado, o
homem se sacudia de dor e tentava em vão se afastar do ferro, mas
ele continuava a ser tocado e o cheiro, como de pelos queimados,
chegava à narinas do professor. O homem uivava e se debatia, porém
quando o ferro se afastou, em vez de gemer e chorar, João de alguma
forma sabia que era isso que deveria acontecer, era o que sempre
acontecia, ele começou a gargalhar como um louco, e ao levantar o
rosto, com um olhar lupino e um sorriso de predador João reconheceu
o rosto que o olhava através do vidro, de uma outra vida, de um
outro lugar, separado por séculos e milhares de quilômetros.
***
A semana
de aulas começara lentamente, como sempre acontecia no retorno das
férias de meio de ano. Sua primeira aula, com apenas uns poucos
alunos que se dignaram a estar presentes, se resumiu a expor o
calendário do semestre e uma explicação rápida sobre como seriam
as avaliações e notas – todos os alunos só se preocupavam com
isso. Parecia ser, sobretudo nos últimos anos, a única preocupação
realmente científica daqueles alunos que dissecavam metodicamente
cada brecha no programa, cada palavra com um cuidado muito maior do
que tinham com os textos da matéria.
Em menos
de duas horas ele se encontrava livre para a sua terceira sessão de
terapia. João sempre se achara um homem bastante lúcido e racional.
Apesar de não ser ateu, sua fé era uma característica secundária
e, como ele mesmo brincava, apenas social. Mas nos últimos tempos
aquele manuscrito estava lhe dando muito mais trabalho do que os
simples problemas que acompanhavam uma transcrição e tradução; A
imersão estava mexendo com os seus sentidos e ele realmente começara
a temer por sua saúde mental, de forma que a procura por um
psicólogo, ainda que feita de forma bastante discreta — ele não
gostava que detalhes de sua vida particular estivessem na boca de
colegas e funcionários — se tornara quase uma urgência. O
professor ligara para o psicólogo e conseguira um adiantamento da
sessão. Seria bom poder sair da terapia e voltar para casa cedo. O
remédio que lhe fora receitado pelo colega psiquiatra de seu
psicólogo, para ajudar no controle da insônia, o deixava um tanto
sonolento e estava atrapalhando no processo de tradução do
manuscrito, que se encontrava mais ou menos no mesmo ponto há quase
um mês. Isso estava incomodando o lado mais profissional do
professor, mas ele não conseguia negar, em seu íntimo, que se
distanciar do manuscrito o havia ajudado a se sentir melhor.
A sessão
com o psicólogo foi bastante amena e discorreu sem grandes
revoluções para o professor. O profissional já adiantara que
acreditava não ser nada particularmente grave, já que João se
mostrava um homem lúcido e ciente de que aqueles sonhos e
alucinações não eram de forma alguma sobrenaturais, mas resultado
de uma mente provavelmente exausta. Acalmara o professor que cada vez
mais temia acabar num sanatório vendo fantasmas e monstros criados
por uma imaginação doentia.
Ao chegar
em casa, João aproveitou seu tempo ganho e resolveu trabalhar mais
um pouco no texto. Ele estava cada vez mais perto do fim do
manuscrito e a história se tornava ainda mais estranha e
interessante aos olhos do pesquisador.
“…na
noite passada, após o fim do interrogatório do homem chamado
Jacques, e da leitura das Completas, quando os monges se retiraram
para dormir, foi escutado um grande alvoroço no […]quando um grupo
de cães ou lobos, provavelmente esfaimados pelo inverno rigoroso, se
aproximou em demasia das paredes do mosteiro e uivou durante um longo
período. Mandei os monges dormirem, mas muitos diziam que era um
sinal da presença do Inimigo e pediam que o interrogatório fosse
suspenso e o homem entregue ao braço secular. Peço que Deus ilumine
meu caminho e garanta sabedoria às minhas ações, pois é em sua
Glória que busco a verdade neste caso…”
A
passagem por si só era fascinante, aquelas pessoas acreditavam em
monstros, fantasmas e demônios e aquele manuscrito lhe dava tais
confirmações. De fato, ele conhecera pessoas em sua vida que se
lessem tais afirmativas provavelmente não seriam capazes de dormir
sossegadas por alguns dias. João se pegou devaneando sobre a
publicação do seu trabalho: ele acreditava que seria um importante
passo em sua carreira e lhe garantiria mais espaço e respeito entre
os medievalistas.
Foi com a
cabeça cheia de planos e ideias que o professor foi se deitar. Era
tarde e o remédio estava fazendo efeito rapidamente, de modo que ele
mal deitara quando um sono sem sonhos o acometeu.
Acordou
no dia seguinte refeito, com a sensação de ter dormido durante uma
semana, levantou-se e preparou um café preto. Enquanto degustava o
líquido quente em uma xícara resolveu olhar novamente o seu
trabalho até então feito. Qual foi seu susto ao ver todas as folhas
espalhadas pelo chão, algumas inclusive pisoteadas ou amassadas. Não
podia ter sido o vento, as janelas do apartamento estavam todas
fechadas devido ao frio do inverno que tardava a ir embora.
Preocupado, o professor checou as portas e ambas continuavam
trancadas, como as deixara. Olhou seus pertences na esperança de que
alguém tivesse entrado ali, pelo menos seria uma explicação
lógica, ou então o remédio o estava transformando num sonâmbulo.
Decidiu ali mesmo que pararia de tomar o remédio, as sessões
deveriam ser suficientes e, além do mais, ele não aguentava ver
suas faculdades mentais nubladas pelos efeitos colaterais do remédio.
O inverno
estava se estendendo além do comum e a cidade ainda parecia envolta
no frio do meio do ano, em vez de começar a sentir a chegada da
primavera. O clima, de certa forma, combinava com o humor do
professor nas últimas semanas. Sem o efeito do remédio, ele
finalmente conseguira terminar de traduzir seu manuscrito e, de uma
forma decepcionante em sua opinião, concluíra que não passava de
alguma espécie de falsificação, ou quem sabe uma história contada
por um escritor particularmente inventivo para sua época.
A última
passagem, antes do pergaminho ser interrompido, ainda ecoava em sua
mente: “…nossas investigações se mostram inconclusivas. O
homem identificado como Jacques admite ser um lobisomem, mas nega
outras acusações: diz não ser um servo de Satã nem compactuar com
demônios, que não foi um ritual de bruxaria que o transformou num
monstro e que na verdade ele nascera assim…” — e após mais
algumas linhas descritivas sobre o que o dito Jacques declarava:
“…uivos junto aos portões do mosteiro, já faz dois dias que
estamos sendo cercados, Deus nos ajude e nos livre das criaturas do
Demônio…”
Fosse o
que fosse, aquele pergaminho perdera boa parte de seu valor, apesar
de ainda poder ser publicado num paper menor ou quem sabe numa
revista que tratasse de história oral? Não era o que o professor
queria, mas quem sabe ele não conseguiria extrair dali algo que
ainda valesse a pena?
Ainda
pensando nisso, João embarcou no metrô para o centro. O pensamento,
ainda que um tanto frustrante, conseguiria pelo menos tirar a
sensação de que ele perdera quase um ano de sua vida para traduzir
aqueles fólios. Podia não ser o seu grande trabalho, mas caso ele
conseguisse confirmar que aquele manuscrito era realmente genuíno,
serviria para outros propósitos, um bom texto sobre o imaginário
medieval talvez?
O frio da
rua o acertou como um soco, ele saíra tarde da faculdade e quando
chegou no centro da cidade as ruas estavam completamente vazias. O
inverno fora rigoroso e o começo da primavera não se mostrava menos
inclemente. João decidiu andar o mais rápido que pudesse até sua
casa, pedir algo quente para jantar, tomar uma ou duas doses de
uísque e dormir. Sua mente estava tão concentrada em seus
pensamentos que ele não viu o homem até bater de frente com ele.
Claramente o sujeito morava nas ruas, tanto suas roupas sujas e
esfarrapadas quanto seu cheiro, parecia cheiro de cachorro molhado…
— Boa
noite, professor João, espero que tenha tido um bom dia — João
não estava certo, mas tinha certeza de que já havia visto o homem,
o que lhe intrigava era ele saber seu nome. — Vejo que ficou até
tarde trabalhando novamente… Sabe, isso ainda vai lhe fazer
realmente mal, se dedicar tão intensamente a algo, que muitas vezes
não vale a pena. Digo, será que sua vida é menos preciosa que um
simples pergaminho, por mais raro que ele pareça? — O professor
estava absolutamente boquiaberto e confuso, como aquele homem sabia
tanto de seu trabalho? E aquele cheiro, parecia tanto com o que ele
havia sentido em seu apartamento…
O choque
do entendimento cruzou seu rosto enquanto o estranho apenas sorriu de
forma lupina, mostrando dentes incrivelmente brancos e de aparência
afiada. — Sabe, professor, nós estamos há muito tempo entre vocês
e normalmente vocês não acreditam em nós além dos limites de
vossas histórias e, devo dizer, preferimos assim, nosso mundo e o
vosso se tocando apenas nas sombras, por isso, nós ficaríamos
felizes que este pergaminho voltasse para a estante de onde veio.
João não
sabia se estava alucinando ou não. O homem parecia conhecer cada
passo seu, cada detalhe de seu trabalho, o professor tentou se
recuperar do choque e responder a altura, porém quando olhou para
frente não mais encontrou o homem, viu apenas uma matilha de cães
que se afastavam rapidamente.
João
entrou em seu apartamento, e antes que se arrependesse do que estava
fazendo simplesmente queimou todos os fac-símiles e folhas de
transcrição. Deletou os arquivos de seu trabalho, até mesmo os
e-mails trocados com a BNF. Decidira que não mais tocaria naquele
trabalho, nunca mais.
No dia
seguinte, após o meio dia, o professor João Alves Monteiro foi
encontrado morto em seu apartamento, aparentemente vítima de uma
convulsão, provavelmente causada pelo excesso de automedicação.
Este conto foi originalmente publicado no site Notícias das Terceira Terra, em março/2014.
Tarcísio Lakatos é mestrando em História pela USP, estudioso do período medieval e fundador do grupo Schola Militum de HEMA e HMB
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