sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A Besta Entre Nós, um conto de Tarcísio Lakatos

“…no ano de mil trezentos e […] de nosso Senhor Jesus Cristo, eu prior […] da ordem dos dominicanos, durante cinquenta dias interroguei à respeito das acusações de ser um lobisomem, compactuar com demônios, andar nu pelos campos e se alimentar de […] durante as luas cheias o homem que se identificou como Jacques, morador da vila de […], na Occitânia…”


O professor João Alves Monteiro se afastou do fac-símile e esfregou os olhos cansados, aquele documento estava lhe dando muito mais trabalho para traduzir do que ele podia imaginar quando o encontrou nos arquivos da BNF.

As letras unciais, apesar de serem típicas do período, estavam escritas com pouca firmeza, havia diversos erros no texto em latim, ambos sinais que indicavam que o escriba não era bem alfabetizado e aparentemente os fólios haviam sido bem maltratados antes de, por alguma forma, irem parar numa estante da biblioteca. Vendo que aquela noite de trabalho estava finda, o professor se levantou de sua cadeira apagou a luz que incidia diretamente sobre a sua escrivaninha (ele preferia trabalhar com cópias físicas em papel, já que o computador sempre lhe dava fortes dores de cabeça) e foi se deitar, pois já passava das duas da manhã. Aquela noite passou sem sonhos, mas mais de uma vez o professor acordou sobressaltado, certo de ter ouvido algo, apesar do silêncio que reinava na parte exterior de seu apartamento.

Acordou novamente de sobressalto; O despertador já havia se desligado (ou ele o havia desligado sem perceber?) e ele já estava mais de duas horas atrasado, aquilo atrapalharia seu planejamento. Não havia tempo agora para se lamentar, mas teria de ficar para mais tarde sua ida à biblioteca, ele tinha uma aula a dar. No fim do dia, após ter exposto longamente sobre diversos aspectos das ordens religiosas medievais para uma sala de graduandos que parecia não se importar com nada além da passagem do tempo (ele aprendera a ignorar muitos dos sinais típicos dos alunos, mas ainda lhe incomodava ver alguns destes olhando para o relógio da parede ou para as janelas com o olhar aflito de um condenado à morte). Decidiu terminar mais cedo a aula, e dispensando o mais rápido que pôde aqueles poucos que pareciam interessados em algo mais do que a nota do fim o semestre e partiu em busca de seu colega de departamento.

O professor Roberto Schilmann era a imagem viva de um pesquisador desses que aparecem em filmes noir: baixinho, com óculos fundo de garrafa, barba farta e grisalha, quase branca, além de estar perdendo os poucos fios de cabelo que ainda possuía no alto da cabeça. Sempre andava vestido com calças de terno e camisas e quando tinha que se apresentar em bancas, fazia questão de por gravata e terno. João não podia negar o afeto que sentia pelo antigo professor e agora colega que, muito solícito, o ajudava sempre que podia da melhor forma, isso desde os tempos em que ele não passava de um aluno brigando por uma iniciação científica. Na época, ele bem quis que seu orientador fosse o professor Schilmann, mas seu interesse específico pela idade média acabou impossibilitando a orientação, já que o professor era especialista em antiguidade, sobretudo fontes romanas e escrita funerária latina.

Era justamente essa sua especialidade que trazia agora João à sala de seu antigo professor, devido não apenas à sua idade, mas também a todos os anos de préstimos à universidade e a sua importância como pesquisador (mais de uma vez ele fora convidado para assumir uma cadeira em universidades como Yale, Cambridge e Sorbonne, mas segundo ele mesmo, ele era brasileiro demais para viver num mundo anglo saxão, e bem humorado demais para aguentar os franceses, sempre seguido de uma piscadela cúmplice) o professor Schilmann era um dos únicos que possuía uma sala somente para si, a qual abarrotava com livros de todos os tipos, além de algumas dúzias de manuais de paleografia latina, medieval e até mesmo do séc XVI (ele considerava essas apenas um hobby, mas era certo que nenhum outro professor na academia era capaz de traduzir com tanta facilidade e de tantas línguas diferentes qualquer espécie de documento quanto o professor Schilmann). Foi no meio dessa bagunça organizada que o professor João encontrou seu antigo mestre:

— Boa tarde, professor o senhor está muito ocupado?

Uma pequena cabeça branca aparece do meio de uma pilha de livros num canto, (o professor, entre suas muitas manias, gostava de trabalhar sentado no chão) e espia um tanto descontente:

— Ora, se não é você João! Entre, por favor! Por um momento pensei que fosse algum aluno, pela forma como me interpelou da porta… — Era famosa a pouca paciência que o professor Schilmann tinha com alunos que o procuravam para pedir revisão de notas ou que ele estendesse os prazos de entrega de seus trabalhos – Mas, me diga, o que precisa? O último manual que lhe recomendei foi útil? Excelente trabalho sobre as fontes da baixa idade média não?

— Sem dúvida professor, mas devo admitir que ainda estou penando para traduzir algumas partes do manuscrito. É estranho como, apesar de se tratar de um documento eclesiástico e sobretudo de uma ordem como a dominicana, o texto é cheio de erros ortográficos e tem um latim um tanto quanto esdrúxulo…

Aquilo era a mais pura verdade. Apesar de não ser a especialidade de João, ele já estava suficientemente familiarizado com o processo da paleografia de forma que, no geral, suas traduções corriam bem. Se não fosse o teor daquele manuscrito, provavelmente ele o deixaria de lado, pelo menos por algum tempo.

— Bem isso pode se dever ao lugar de onde o manuscrito veio, não foi você que me disse que ele é occitano? Na idade média aquilo era o fim do mundo para os franceses e provavelmente explicaria a escolha de um grupo menos qualificado para tratar de um possível caso que dependesse da intervenção pontifica…

— Hum, pode ser… mas ainda assim é estranho, é como se o caso fosse tão pouco importante que ninguém queria lhe dar atenção… — ou tão importante que tentaram esconder sob um véu de desimportância, pensou consigo o professor, mas seus muitos anos no meio acadêmico lhe ensinaram que teorias de conspiração e pensamento excessivamente fora da caixa não eram lá muito bem vistos. Afinal, não eram tantos os relatos de licantropia, não apenas na França, mas no mundo medieval como um todo, aquilo João podia alegar com bastante propriedade já que sua vida acadêmica fora voltada para estudar relatos dessa natureza durante toda a idade média.

— Bem, o que quer que seja você precisa primeiro terminar a transcrição para poder depois formular qualquer espécie de teoria, sim? Quando terminar traga-a para mim que eu darei uma olhada para você. — Dito isso o professor voltou a se escarafunchar no que quer que estivesse fazendo, o que não deu tempo a João de realmente lhe pedir o que havia vindo pedir: uma ajuda naquele momento e não apenas quando terminasse a tradução, que vinha sendo sua nêmeses nesses últimos cinco meses.

Ainda um pouco desconcertado com a facilidade com que seu antigo professor se desembaraçou de sua presença para continuar sua pesquisa, fosse ela qual fosse, o professor Monteiro se encaminhou para o metrô, decidido a não pegar no manuscrito por, pelo menos, uma semana. Seria bom desanuviar a cabeça um pouco. Às vezes se afastar do objeto de estudo lhe dava uma nova visão sobre este e, de qualquer forma, com o fim do semestre se aproximando seria bom ele preparar as provas e corrigir os trabalhos já entregues.

Ao entrar no vagão de trem, João procurou ficar longe de um grupo de alunos que tagarelava alegremente sobre festas e bebedeiras, e habilmente passou pelo grupo sem ser notado. Não que ele desgostasse de sua profissão ou tivesse qualquer espécie de desdém pelos seus alunos, mas ele já notara que a grande maioria destes se sentia desconfortável quando davam de cara com um professor fora da sala. Ele ainda se lembrava da frase tímida que uma de suas melhores alunas um dia teve coragem de soltar: — “Voltar com o senhor no metrô, professor, me faz sentir como se estivesse levando um trabalho difícil para entregar amanhã e que eu nem comecei a fazer” – daquele dia em diante o professor procurou ao máximo não criar essa estranha sensação de desconforto que parecia ser partilhada por todos os alunos. Ele encontrou um lugar para sentar no trem ainda semi vazio e acabou adormecendo.

Sonhou que estava corrigindo as provas do fim de semestre, porém quando olhava suas anotações, estas estavam no estranho latim que ele vira no manuscrito e quando ele tentava descobrir o que estava escrito o professor Schilmann, vestido como um prior dominicano, o repreendia por sua curiosidade. Acordou sobressaltado com o som do apito da porta e meio correndo meio andando, saiu esbaforido pela porta afora antes que essa se fechasse em suas costas.

Um cheiro forte de cachorro molhado atingiu suas narinas como um soco ao abrir a porta, o professor se preparou para dar um esporro em suas filhas, ele já dissera que não era para deixar o Atlas… – João Monteiro estancou ao se dar conta da realidade ao seu redor: seu dogue alemão, Atlas, havia morrido há mais ou menos um ano, e pouco depois aconteceu sua separação de sua primeira mulher. Suas filhas, Elizabeth e Karina, não o visitavam havia semanas — em parte devido aos seus muitos compromissos em parte porque as meninas não ficavam muito à vontade no pequeno apartamento do professor.

João fechou a porta e se sentou por um momento ainda confuso, acreditando estar cansado e um pouco desnorteado por ter saído esbaforido do metrô, se serviu de uma boa dose de café, que ele esquentou no micro-ondas, e com mais calma procurou sentir novamente o cheiro que lhe trouxera a vívida lembrança. O cheiro, ou pelo menos o resquício dele, continuava por lá, mas nem de perto lhe dava a mesma sensação que tivera ao abrir a porta. E o que mais o intrigava era qual seria a origem deste. Será que haviam ilusões olfativas? João nunca havia ouvido falar disso, mas não duvidava que sua mente cansada pudesse lhe pregar peças como essa.

Decidiu que tiraria o restante do dia para descansar, tomou um banho, preparou um jantar rápido – na verdade comeu um lanche, como fazia na maioria das noites após a separação — sentou um pouco em frente a televisão e até mesmo cogitou ligar para suas filhas, porém já era tarde e nas sextas feiras elas costumavam sair com seus amigos ou, quem sabe, até mesmo namorados, afinal ambas haviam puxado a beleza da mãe, mas ele, apesar dele não ser feio, era um homem bastante comum, e ambas já estavam na adolescência… O pensamento irritou o professor que decidiu que era melhor se deitar em vez de ficar pensando bobagens sem sentido...

...a sala era bastante fria e escura, João conseguia distinguir um homem seminu, apenas com os calções típicos dos camponeses, agrilhoado à parede a alguns metros de si, à sua frente estava uma peça de pergaminho claramente reutilizada. Por um momento ele teve certeza que fora ele quem ficara horas raspando o couro para deixa-lo limpo o suficiente para ser reutilizado, Schilmann estava a seu lado, recitando o pai nosso e o Te Deum em latim, João tentava falar, mas sua voz não saia e ele parecia estar congelado na cadeira, enquanto isso o homem na parede estava sendo marcado com ferros quentes.

O professor lutava para sair do lugar, ele queria gritar para que aquela loucura parasse, mas sua voz não saia. Acordou sobressaltado, coberto em suor e escutando os cães da rua uivando para não se sabe o quê…

***

As duas últimas semanas haviam sido muito melhores do que o professor poderia ter imaginado. Ter se afastado um pouco do trabalho de transcrição do manuscrito lhe dera tempo de sobra não apenas para entregar em dia as provas e trabalhos de fim de semestre como ainda visitar suas filhas no fim de semana – apesar do clima ser sempre estranho quando as meninas estavam junto dele e da mãe, João procurava relevar pelo bem delas, apesar de sua ex-mulher não ter tantos escrúpulos assim. A separação e o motivo dela (sua ex tinha certeza que ele havia tido um caso com uma de suas orientandas) ainda criavam um claro clima de animosidade. Por um curto período o professor Monteiro não sentiu sobre si a carga que vinha sentindo desde que decidira estudar aquele manuscrito.

É que, até então, ele jamais sentira-se daquele jeito ao estudar nenhum dos manuscritos; Mesmos os mais detalhados e extensos interrogatórios medievais não haviam lhe perturbado tanto e, apesar de não serem tantos nem tão terríveis quanto a maioria das pessoas imagina, a descrição dos diversos suplícios aos quais os interrogados eram submetidos normalmente eram suficientes para incomodar pessoas menos fortes de estômago.

João Alves Monteiro construiu sua história acadêmica em cima do estudo do imaginário medieval e como ele encostava na realidade destas pessoas. A primeira vez que teve contato com o tema foi através do livro do aclamado medievalista e micro historiador, Carlo Ginzburg, chamado História Noturna. Nele, a passagem que mais lhe chamou atenção foi a que tratava do caso de um homem de nome Thiers que se dizia lobisomem. O caso impressionou tanto a João que este não mais conseguiu se desvencilhar do tema, sua iniciação científica foi em cima da dita passagem, no mestrado estudou o imaginário medieval e suas transposições para a realidade, no doutorado voltou ao tema da licantropia e sua relação com o vampirismo no leste europeu e agora, no pós-doutorado, graças ao manuscrito que encontrara praticamente intacto e completamente esquecido na Bibliothèque Nationale de France, ele podia voltar com força ao tema da licantropia medieval. Apesar de nunca ter revelado no meio acadêmico, desde sua infância o lobisomem sempre fora o monstro que mais o intrigava, representando ao mesmo tempo o medo do selvagem e a vontade do ser humano de ser o predador supremo.

Em casa o professor Monteiro mantinha uma pequena biblioteca, nada acadêmica, onde guardava todo e qualquer material sobre esses monstros que ele pudesse encontrar, fossem livros, histórias em quadrinhos, filmes e até mesmo RPGs, apesar do professor em si jamais ter sentado numa mesa com o intuito de jogar. O importante agora é que ele estava mais descansado, com as energias renovadas para poder recomeçar suas pesquisas e aproveitando o período das férias de meio de ano, ele sabia que poderia dar mais atenção ao trabalho que até então o consumira de um jeito inimaginável.

João adorava ir à biblioteca da faculdade durante a época de férias. Apesar dos funcionários sem nenhuma boa vontade, era a melhor época para visitar suas estantes, já que poucos alunos apareciam por ali. Exemplo disso era aquele dia: fora ele, apenas mais dois alunos (que ele reconheceu como sendo um mestrando e um doutorando) andavam quase como sombras silenciosas entre as estantes de livros. O silêncio era tão profundo que parecia impossível imaginar que lá fora o sol mal chegara ao meio dia e que fora dos portões da faculdade o mundo continuava tão movimentado quanto de costume. Sua visita não lhe rendera nenhuma grande descoberta, nenhuma passagem que ele não tivesse já estudado e nenhum livro que não tivesse folheado, mas ajudara a refrescar sua memória quanto a alguns fatos interessantes que lhe ajudariam a criar pontes de raciocínio entre estes trabalhos e sua tese.

Após várias horas perdido entre as estantes, o professor deixava a faculdade, no começo do anoitecer. Em sua mochila, alguns livros e mais algumas xerox de passagens que lhe interessaram, mas que não compensava pegar o livro inteiro apenas por causa destas. O frio do meio do ano já começava a se fazer sentir, com um vento úmido e gelado que passava diretamente por sua blusa de lã. O professor seguiu diretamente para a estação de metrô e de lá para o centro da cidade, onde seu pequeno apartamento ficava localizado.

João sempre amara o centro da cidade, antigo e solene, apesar de muitas vezes escondido sob camadas de sujeira, pobreza e barulho incessante, ele ainda conseguia ver naquelas ruas de paralelepípedos, lajotas e ladrilhos parte do antigo glamour que ali existiram. E neste sentido a chegada da noite, depois que as firmas, centrais de telemarketing e os escritórios fechavam e estas pessoas rapidamente voltavam para suas casas, ajudava ainda mais a trazer de volta a ilusão de um lugar mais belo, iluminado por lampiões a gás, que agora só existia na mente daqueles que, assim como o professor, amavam de forma mais ou menos inconteste aquela parte da cidade. De certa forma, fora esse estranho saudosismo, apesar de João nunca ter morado anteriormente no centro da cidade, que o levou, após sua separação, a comprar aquele pequeno apartamento no centro, isso e uma vontade quase intestina de se ver longe da vida suburbana que até então vivera juntamente com sua esposa e suas filhas, num bairro de classe média alta, onde as pessoas se preocupavam mais com suas roupas do que com o conteúdo de suas leituras. Um lugar onde ir ao shopping “desfilar” nos fins de semana era uma espécie de obrigação social.

Enquanto divagava sobre assuntos diversos, no curto caminho que ia da saída do metro até seu apartamento, João notou como as ruas estavam desertas, o frio certamente espantara a grande maioria das pessoas e nem mesmo os sem teto, que nesta hora já teriam feito suas camas, aproveitando cantos e esquinas dos prédios para evitar pelo menos parcialmente o frio, estavam presentes. Os únicos outros seres com os quais João cruzara foi um grande bando de cães, que pareciam ter seguido o professor da saída do metrô até a porta de vidro do prédio. O professor sempre gostara de cães. Do corredor, antes de entrar no elevador, deu um ultimo olhar para a matilha que seguira em frente pela rua. Estranhamente, agora o professor percebeu que, entre os cães, abaixado e fazendo carinho nestes, havia um homem, claramente morador das ruas, e que ele olhava diretamente para o professor. Incomodado pela força do olhar, João se virou e entrou no elevador.

...novamente lá estava o professor Schillmann vestido como um dominicano, desta vez ele recitava o Credo, enquanto um ferro em brasa era encostado na pele do pobre coitado pendurado na parede pelas correntes de ferro, o homem uivava como um cão, o que enchia João de terror. Ele queria pedir para que aquela loucura parasse, mas sua boca estava imóvel, enquanto seus olhos eram incapazes de se desviar da cena e sua mão continuava a anotar inexoravelmente sobre o pergaminho raspado, o homem se sacudia de dor e tentava em vão se afastar do ferro, mas ele continuava a ser tocado e o cheiro, como de pelos queimados, chegava à narinas do professor. O homem uivava e se debatia, porém quando o ferro se afastou, em vez de gemer e chorar, João de alguma forma sabia que era isso que deveria acontecer, era o que sempre acontecia, ele começou a gargalhar como um louco, e ao levantar o rosto, com um olhar lupino e um sorriso de predador João reconheceu o rosto que o olhava através do vidro, de uma outra vida, de um outro lugar, separado por séculos e milhares de quilômetros.

***

A semana de aulas começara lentamente, como sempre acontecia no retorno das férias de meio de ano. Sua primeira aula, com apenas uns poucos alunos que se dignaram a estar presentes, se resumiu a expor o calendário do semestre e uma explicação rápida sobre como seriam as avaliações e notas – todos os alunos só se preocupavam com isso. Parecia ser, sobretudo nos últimos anos, a única preocupação realmente científica daqueles alunos que dissecavam metodicamente cada brecha no programa, cada palavra com um cuidado muito maior do que tinham com os textos da matéria.

Em menos de duas horas ele se encontrava livre para a sua terceira sessão de terapia. João sempre se achara um homem bastante lúcido e racional. Apesar de não ser ateu, sua fé era uma característica secundária e, como ele mesmo brincava, apenas social. Mas nos últimos tempos aquele manuscrito estava lhe dando muito mais trabalho do que os simples problemas que acompanhavam uma transcrição e tradução; A imersão estava mexendo com os seus sentidos e ele realmente começara a temer por sua saúde mental, de forma que a procura por um psicólogo, ainda que feita de forma bastante discreta — ele não gostava que detalhes de sua vida particular estivessem na boca de colegas e funcionários — se tornara quase uma urgência. O professor ligara para o psicólogo e conseguira um adiantamento da sessão. Seria bom poder sair da terapia e voltar para casa cedo. O remédio que lhe fora receitado pelo colega psiquiatra de seu psicólogo, para ajudar no controle da insônia, o deixava um tanto sonolento e estava atrapalhando no processo de tradução do manuscrito, que se encontrava mais ou menos no mesmo ponto há quase um mês. Isso estava incomodando o lado mais profissional do professor, mas ele não conseguia negar, em seu íntimo, que se distanciar do manuscrito o havia ajudado a se sentir melhor.

A sessão com o psicólogo foi bastante amena e discorreu sem grandes revoluções para o professor. O profissional já adiantara que acreditava não ser nada particularmente grave, já que João se mostrava um homem lúcido e ciente de que aqueles sonhos e alucinações não eram de forma alguma sobrenaturais, mas resultado de uma mente provavelmente exausta. Acalmara o professor que cada vez mais temia acabar num sanatório vendo fantasmas e monstros criados por uma imaginação doentia.

Ao chegar em casa, João aproveitou seu tempo ganho e resolveu trabalhar mais um pouco no texto. Ele estava cada vez mais perto do fim do manuscrito e a história se tornava ainda mais estranha e interessante aos olhos do pesquisador.

“…na noite passada, após o fim do interrogatório do homem chamado Jacques, e da leitura das Completas, quando os monges se retiraram para dormir, foi escutado um grande alvoroço no […]quando um grupo de cães ou lobos, provavelmente esfaimados pelo inverno rigoroso, se aproximou em demasia das paredes do mosteiro e uivou durante um longo período. Mandei os monges dormirem, mas muitos diziam que era um sinal da presença do Inimigo e pediam que o interrogatório fosse suspenso e o homem entregue ao braço secular. Peço que Deus ilumine meu caminho e garanta sabedoria às minhas ações, pois é em sua Glória que busco a verdade neste caso…”

A passagem por si só era fascinante, aquelas pessoas acreditavam em monstros, fantasmas e demônios e aquele manuscrito lhe dava tais confirmações. De fato, ele conhecera pessoas em sua vida que se lessem tais afirmativas provavelmente não seriam capazes de dormir sossegadas por alguns dias. João se pegou devaneando sobre a publicação do seu trabalho: ele acreditava que seria um importante passo em sua carreira e lhe garantiria mais espaço e respeito entre os medievalistas.

Foi com a cabeça cheia de planos e ideias que o professor foi se deitar. Era tarde e o remédio estava fazendo efeito rapidamente, de modo que ele mal deitara quando um sono sem sonhos o acometeu.

Acordou no dia seguinte refeito, com a sensação de ter dormido durante uma semana, levantou-se e preparou um café preto. Enquanto degustava o líquido quente em uma xícara resolveu olhar novamente o seu trabalho até então feito. Qual foi seu susto ao ver todas as folhas espalhadas pelo chão, algumas inclusive pisoteadas ou amassadas. Não podia ter sido o vento, as janelas do apartamento estavam todas fechadas devido ao frio do inverno que tardava a ir embora. Preocupado, o professor checou as portas e ambas continuavam trancadas, como as deixara. Olhou seus pertences na esperança de que alguém tivesse entrado ali, pelo menos seria uma explicação lógica, ou então o remédio o estava transformando num sonâmbulo. Decidiu ali mesmo que pararia de tomar o remédio, as sessões deveriam ser suficientes e, além do mais, ele não aguentava ver suas faculdades mentais nubladas pelos efeitos colaterais do remédio.

O inverno estava se estendendo além do comum e a cidade ainda parecia envolta no frio do meio do ano, em vez de começar a sentir a chegada da primavera. O clima, de certa forma, combinava com o humor do professor nas últimas semanas. Sem o efeito do remédio, ele finalmente conseguira terminar de traduzir seu manuscrito e, de uma forma decepcionante em sua opinião, concluíra que não passava de alguma espécie de falsificação, ou quem sabe uma história contada por um escritor particularmente inventivo para sua época.

A última passagem, antes do pergaminho ser interrompido, ainda ecoava em sua mente: “…nossas investigações se mostram inconclusivas. O homem identificado como Jacques admite ser um lobisomem, mas nega outras acusações: diz não ser um servo de Satã nem compactuar com demônios, que não foi um ritual de bruxaria que o transformou num monstro e que na verdade ele nascera assim…” — e após mais algumas linhas descritivas sobre o que o dito Jacques declarava: “…uivos junto aos portões do mosteiro, já faz dois dias que estamos sendo cercados, Deus nos ajude e nos livre das criaturas do Demônio…”

Fosse o que fosse, aquele pergaminho perdera boa parte de seu valor, apesar de ainda poder ser publicado num paper menor ou quem sabe numa revista que tratasse de história oral? Não era o que o professor queria, mas quem sabe ele não conseguiria extrair dali algo que ainda valesse a pena?

Ainda pensando nisso, João embarcou no metrô para o centro. O pensamento, ainda que um tanto frustrante, conseguiria pelo menos tirar a sensação de que ele perdera quase um ano de sua vida para traduzir aqueles fólios. Podia não ser o seu grande trabalho, mas caso ele conseguisse confirmar que aquele manuscrito era realmente genuíno, serviria para outros propósitos, um bom texto sobre o imaginário medieval talvez?

O frio da rua o acertou como um soco, ele saíra tarde da faculdade e quando chegou no centro da cidade as ruas estavam completamente vazias. O inverno fora rigoroso e o começo da primavera não se mostrava menos inclemente. João decidiu andar o mais rápido que pudesse até sua casa, pedir algo quente para jantar, tomar uma ou duas doses de uísque e dormir. Sua mente estava tão concentrada em seus pensamentos que ele não viu o homem até bater de frente com ele. Claramente o sujeito morava nas ruas, tanto suas roupas sujas e esfarrapadas quanto seu cheiro, parecia cheiro de cachorro molhado…

— Boa noite, professor João, espero que tenha tido um bom dia — João não estava certo, mas tinha certeza de que já havia visto o homem, o que lhe intrigava era ele saber seu nome. — Vejo que ficou até tarde trabalhando novamente… Sabe, isso ainda vai lhe fazer realmente mal, se dedicar tão intensamente a algo, que muitas vezes não vale a pena. Digo, será que sua vida é menos preciosa que um simples pergaminho, por mais raro que ele pareça? — O professor estava absolutamente boquiaberto e confuso, como aquele homem sabia tanto de seu trabalho? E aquele cheiro, parecia tanto com o que ele havia sentido em seu apartamento…

O choque do entendimento cruzou seu rosto enquanto o estranho apenas sorriu de forma lupina, mostrando dentes incrivelmente brancos e de aparência afiada. — Sabe, professor, nós estamos há muito tempo entre vocês e normalmente vocês não acreditam em nós além dos limites de vossas histórias e, devo dizer, preferimos assim, nosso mundo e o vosso se tocando apenas nas sombras, por isso, nós ficaríamos felizes que este pergaminho voltasse para a estante de onde veio.

João não sabia se estava alucinando ou não. O homem parecia conhecer cada passo seu, cada detalhe de seu trabalho, o professor tentou se recuperar do choque e responder a altura, porém quando olhou para frente não mais encontrou o homem, viu apenas uma matilha de cães que se afastavam rapidamente.

João entrou em seu apartamento, e antes que se arrependesse do que estava fazendo simplesmente queimou todos os fac-símiles e folhas de transcrição. Deletou os arquivos de seu trabalho, até mesmo os e-mails trocados com a BNF. Decidira que não mais tocaria naquele trabalho, nunca mais.


No dia seguinte, após o meio dia, o professor João Alves Monteiro foi encontrado morto em seu apartamento, aparentemente vítima de uma convulsão, provavelmente causada pelo excesso de automedicação.



Este conto foi originalmente publicado no site Notícias das Terceira Terra, em março/2014.

Tarcísio Lakatos é mestrando em História pela USP, estudioso do período medieval e fundador do grupo Schola Militum de HEMA e HMB

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