Salve, medievalistas!
De todos os animais que interagem com o homem, as aves de rapina são talvez os mais impressionantes e majestosos. E a falcoaria, que é um assunto sobre o qual queremos falar por aqui, tem uma longa e interessante história, bastante relacionada com a Idade Média.
Fizemos uma entrevista muito bacana com Diego Bitener, o treinador de aves da iniciativa Turma do Gavião, que tem estado presente em alguns eventos do meio medieval em SP.
Confiram!
A Turma do Gavião é composta por Diego e sua esposa Leandra, que moram em Sando André-SP, e as cinco aves que eles possuem e treinam atualmente. Todas muito bem amansadas – ficaram calmas em seus poleiros à nossa volta durante a entrevista: Cléo (gavião-asa-de-telha), Ragnar (águia-chilena), Sansão (corujão-orelhudo), Batatinha (coruja-de-igreja) e Freya (águia-de-cauda-branca).
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Skald: O que exatamente é a sua atividade?
Diego: Nós trabalhamos com a parte de educação ambiental. Participamos de eventos, vamos em escolas, levando sempre as aves de rapina, que são o nosso animal de escolha. Há pessoas que usam outros animais – répteis, por exemplo – pra desenvolver atividades desse tipo. No nosso caso, usamos apenas aves de rapina. Chama bastante atenção, as pessoas têm um encanto grande pelas aves.
E um papel importante da nossa atividade é desmistificar certas opiniões que as pessoas tem sobre as aves – há quem associe o pio da coruja com maus presságios, por exemplo, e nós tentamos combater esse tipo de superstição. Tem também aquela história de que a águia numa certa altura da vida vai pro alto da montanha, arranca o bico, as penas e espera crescer de novo pra começar uma nova vida...
Skald: Eu já li esse texto na internet! (risos)
Diego: Pois é... é uma mensagem bonita de renovação, mas essencialmente é uma mentira, uma lenda. E nós procuramos desfazer esse tipo de mito, além de promover conscientização e preservação, trazendo o ser humano pra mais perto da natureza. Quando a pessoa vai num zoológico, ela vê a ave naquele cubículo, de longe, ou nem vê direito; nós trazemos a ave pra perto da pessoa, fazemos um apanhado de informações, satisfazemos a curiosidade, deixamos tirar foto, fazer carinho, e assim fazemos um trabalho de aproximação.
Nós gostamos muito de ir a feiras medievais, onde o pessoal já tem aquele encanto natural, até pela história da falcoaria.
Skald: Legal! Você pode falar um pouco sobre a história da falcoaria?
Diego: Até onde se sabe, o treinamento das aves para caça vem desde 1400 anos antes de Cristo. Pode ser que a prática seja ainda mais antiga, mas não há comprovação. Os egípcios, por exemplo, já cultuavam as aves de rapina, mas não tem nada que mostre que eles as utilizassem pra caça.
O registro mais antigo de falcoaria é dos assírios, e depois disso a prática se desenvolveu pela China, Japão e Oriente Médio, e essas áreas faziam uma troca cultural grande em termos de técnica, equipamentos e conhecimentos.
Depois a falcoaria se espalhou pela Europa, onde no começo as aves de rapina eram utilizadas para caça e subsistência, e depois virou uma coisa mais elitizada e hierarquizada, um esporte para os nobres.
Hoje a falcoaria é considerada patrimônio histórico da humanidade pela UNESCO.
Hora do rango! |
... e ai de quem tentar roubar um pedaço... |
Skald: E como é a falcoaria no Brasil?
Diego: Aqui no Brasil nós estamos ainda engatinhando. A associação mais antiga é de 1997. A prática está se difundindo bastante, mas ainda estamos bem no começo.
Skald: E a atividade de educação ambiental é a sua atividade principal?
Diego: No momento, ainda não. Eu tenho meu emprego, e chegando em casa eu visto a camisa do treinador de aves. Chego em casa e vou treinar os bichos, cuidar deles, e no final de semana estou quase sempre indo pra eventos com eles. É uma correria grande. Então no momento eu tenho que me dividir, mas a longo prazo meu objetivo é me dedicar apenas às aves de rapina.
Skald: E no que consiste especificamente ser um treinador de aves? Você vai treiná-las pra caçar?
Diego: Não, o foco é a educação ambiental. Até porque a caça em São Paulo é proibida, exceto em situações específicas, e mesmo assim é realizada não como lazer, mas como trabalho.
Eu utilizo técnicas de falcoaria pra fazer o lançamento, o treinamento e o condicionamento das aves, mas a parte de caça fica para empresas que fazem trabalhos de controle. Por exemplo: há empresas que fazem controles em aeroportos de pombos, quero-quero, e até de outras aves de rapina como urubus e carcarás, que são consideradas problemas por poderem colidir com aviões. A partir do momento que existe um prejuízo financeiro ou sanitário, a falcoaria pode ser utilizada, por ser de certa forma o meio mais “natural” de lidar com o problema: você tem uma presa e coloca em ação um predador. É melhor do que chegar atirando nos bichos.
Skald: E fora a caça, quais são os outros objetivos do treino de uma ave?
Diego: Você pode usar o treinamento para fazer reabilitação, por exemplo. Quando uma ave se acidenta, seja porque se enroscou numa linha de cerol ou porque levou um tiro, leva meses pra se recuperar. E aí o treinamento ajuda a reabilitar o animal, porque depois que o bicho passou meses num viveiro parado se recuperando, não basta soltar na natureza, ele pode morrer por não estar no condicionamento físico pra caçar. Às vezes a pessoa que cuida só dá alimento morto pro animal, não instiga o bicho a caçar, e a soltura fica complicada. A ave tem que estar afiada pra sobreviver por conta própria.
Skald: Existe uma demanda grande para essa reabilitação de aves?
Diego: Tem bastante. Muitas aves chegam acidentadas todos os dias, e os centros de triagem do IBAMA ou zoológicos não têm condições de fazer um trabalho de reabilitação como deve ser feito.
Skald: Faltam profissionais como você, com essa expertise?
Diego: Até tem bastante gente que trabalha com isso, mas falta muito incentivo fiscal. O pessoal reclama muito de falta de verba, falta de espaço físico pra colocar mais bichos, então o sistema acaba funcionando com prioridades. Se um animal chega ferido e a asa tem que ser amputada, eles não vão manter lá, acaba sendo eutanasiado. Se chega um gavião-carijó, que é uma espécie mais comum, e um gavião-pega-macaco, que já é uma ave mais rara, o viveiro vai dar prioridade pro pega-macaco, e se o viveiro não tiver condições de realizar a soltura do carijó, vai acabar sofrendo eutanásia também.
Hora do banho, Ragnar! |
Skald: Essa é uma questão sobre a qual eu não fazia ideia. Fala um pouco mais: o que causa esses problemas?
Diego: O ser humano é a grande problemática. A gente vê muito problema com vidro: a ave vem com tudo, bate no vidro e acaba se lesionando, tendo um problema neurológico, alguma fratura de asa.
Pipas são um problema também: se a linha enrosca em algum lugar, o cara simplesmente corta e pega a pipa de volta, mas o emaranhado que fica vira uma armadilha onde uma ave pode ficar presa.
Um bicho voando pode se assustar com rojão ou outros barulhos altos. Já aconteceu de eu estar treinando e na hora que o gavião ía pousar na luva, alguém soltou um rojão, o bicho se desesperou e saiu da área de vôo. Eu tive que esperar ele se acalmar e ir chamando até ele voltar.
É comum os bichos levarem tiro: o cara vê o gavião, fica com medo dele atacar as galinhas, e mete bala.
Tem também problemas com envenenamento: o cara coloca veneno pro rato, daí a ave come o rato e acaba morrendo junto. Ou o cara coloca pro rato uma daquelas armadilhas de cola, e a ave acaba ficando presa e morrendo ali.
Enfim, o ser humano é a principal causa de problemas para as aves de rapina. Elas são predadoras de topo, mas as cidades estão em crescimento constante e vão pressionando o habitat dos bichos, que acabam diminuindo em número. E com isso, inclusive, aumenta o número das presas delas, que são consideradas pragas pelos seres humanos, como os pombos e ratos, por exemplo.
Skald: E como você começou a mexer com isso? Conta um pouquinho da sua história com as aves.
Diego: Eu sempre gostei de animais silvestres e exóticos. Comecei com répteis, já tive em casa jibóia, teiu... Daí há quatro anos eu tive que fazer uma cirurgia na coluna. Enquanto tava deitado em recuperação, assisti todas as temporadas de Game of Thrones e senti vontade de começar a aprender mais sobre aves de rapina. Comecei a entrar em sites americanos, a aprender sobre equipamentos, manejo, e ainda quando estava me recuperando adquiri a minha primeira ave, que foi um falcão. E desde então eu já treinei umas trinta aves de rapina. Das que estão aqui hoje, a que está há mais tempo comigo é a Cléo, que tem quatro anos.
Já treinei aves que ficaram comigo por um tempo, aves de outras pessoas que me pediram pra fazer alguma correção de comportamento. A maioria foram gaviões e corujas.
O pessoal procura muito as corujas como pet, daí fecha a casa, deixa o bicho solto lá dentro e fica interagindo com ele. É um animal manso, tranquilo, com um valor acessível... Uma coruja-de-igreja como a minha Batatinha custa em torno de uns mil e quinhentos reais.
Skald: Tem filhote de cachorro que é mais caro que isso (risos)...
Diego: Sim... Já um corujão-orelhudo como o Sansão custa uns cinco, seis mil reais, por ser uma coruja maior, que dá menos filhotes, se reproduz apenas em uma determinada época do ano, etc.
Aliás a Batatinha é de uma espécie que procria muito, mas na natureza ela seria presa pro Sansão ou pra qualquer outra das aves que eu tenho aqui. Como eu disse, eles são predadores de topo, e uma coruja pequena pode acabar sendo uma presa fácil.
Skald: Como uma pessoa deve fazer se quiser adquirir um animal desses?
Diego: Tem que comprar de um criadouro legalizado, nunca capturar na natureza. Todas as aves que eu tenho aqui, por exemplo, tem anilha (que é a identificação mais básica), microchip e documentos que comprovam que elas nasceram em cativeiro. Tem quem capture na natureza e até falsifique a anilha, mas o cara pode tomar uma multa violenta.
Isso, aí mesmo! |
Se você pega uma coruja dessas selvagem, por exemplo, não dá pra amansar. O certo é criar desde filhotinho, pra já acostumar desde o começo com o contato com seres humanos.
Skald: Certo. E você dá cursos pra quem quer aprender a manejar aves de rapina?
Diego: Sim, aos finais de semana, e sempre pra uma pessoa só, porque aí eu consigo avaliar com precisão no que a pessoa tem dificuldade e direcionar bem. Metade de um dia de curso é teoria e a outra metade é prática, e aí eu abordo tudo: como montar o equipamento, como fornecer o alimento, técnicas de treinamento e amansamento, etc. Dou orientação também sobre qual espécie adquirir, dependendo da situação.
What? |
Eu por exemplo sou vidrado em falcão, é um vôo ágil, queria ter um falcão-peregrino, mas não dá pra ter aqui na cidade, porque o animal exige um campo vasto. Gavião e coruja é um pouco mais fácil, porque é um vôo mais curto, mais retilíneo. O falcão, não... ele sobe, daí ele pega uma térmica, fica lá em cima, você tem que jogar uma presa pra ele mergulhar, enfim, tem que ter uma atenção grande com o campo, e mesmo assim você ainda tá fadado ao risco do bicho sair daquele campo, ir pra cidade e acabar sofrendo uma acidente. Fora que falcão precisa ser treinado todo dia – a segurança não vem só do treinamento, mas também da rotina, eles são muito sistemáticos.
E o treinamento é sempre adaptado pra cada tipo de bicho. Cada espécie tem um jeito diferente de abordar. O treinamento de um falcão é diferente do treinamento de águia, que é diferente do treinamento de um gavião.
Eu comecei aprendendo sozinho, errei muito e aprendi com os erros, e estou sempre aprendendo, e procuro ajudar quem está interessado nesse aprendizado.
Tem sempre um desafio novo, e o meu desafio atual é a Freya, essa águia-de-cauda-branca.
Skald: Quais são suas dicas pra quem quer começar a ter contato com aves de rapina ou quem sabe até ter uma como pet?
Diego: Estude antes, não compre por impulso. Você vai ter como comprar ou fazer o equipamento de treinamento dela? Você tem disponibilidade de tempo pra passear com o bicho? Tem disponibilidade pra fazer o treinamento da ave pelo menos três vezes por semana?
Você vai poder dar alimento de qualidade? Nada do que você deve dar para uma ave de rapina vai ser encontrado no super-mercado.
Você tem condições de fazer a higiene diariamente? Se você deixar tudo sujo, num local pouco ventilado, as fezes podem criar fungos, por exemplo. Daí o animal inala aquilo, tem problemas pulmonares e morre. E até você perceber que tem algo errado com um bicho desses, o problema já tá num estágio avançado. Eles são predadores e jamais vão demonstrar fraqueza, porque na natureza se ele demonstra fraqueza, vira presa.
Parte do equipamento de um falcoeiro |
Alimento oferecido a uma das aves enquanto fazíamos a entrevista |
A pessoa precisa ter tudo isso em mente, estudar e adaptar o modo de vida pra receber o bicho. Se não, o cara recebe o animal e em pouco tempo vê que dá um trabalhão, que não é nada daquilo que ele queria. Daí quem sofre é a ave, que passa de mão em mão, como a Freya aqui, por exemplo.
Das aves que estão aqui, ela é a mais velha, já tem sete anos, embora seja a que está há menos tempo comigo. Ela passou pela mão de várias pessoas, e ninguém estava preparado. Agora eu preciso remediar a situação, e remediar é sempre mais complicado. Por isso eu disse que ela é o meu desafio atual.
Então eu recomendo que o pessoal não foque no valor da ave, como costumam fazer, mas sim na manutenção do bicho. É claro que vai haver um gasto com alimentação, equipamento e tal, mas a dificuldade é mais de tempo do que financeira.
E claro, eu recomendo que a pessoa estude e busque conhecimento antes com quem tem mais experiência, fazendo cursos, se puder.
Skald: A pessoa precisa ter autorização do IBAMA ou algo assim pra ter uma ave dessas?
Diego: Quem precisa de autorização do IBAMA é o criadouro, que vai te dar uma nota fiscal de venda. E aí você você pode ir com o bicho pra onde quiser, até levar no shopping, se for um shopping que permita. Só não vai ser um passeio muito proveitoso porque todo mundo vai te parar pra tirar foto (risos).
É diferente de um animal ilegal, que tem que ficar escondido. E praticamente não tem como você ter um bicho desses e manter escondido, porque o treinamento e o amansamento é necessariamente num lugar externo.
Então o problema que você vai ter é o tempo que vai ter que dedicar à ave, mas a compra em si é super tranquila, não tem burocracia. O que tem é fila de espera, pois os quatro criadouros legais que existem no Brasil não atendem completamente a demanda. Então entre fazer a reserva e receber o bicho, você vai ter aí um ano de tempo, mais ou menos, pra ir estudando.
A casa de um treinador de aves apaixonado pelo que faz |
Skald: Legal. Essas eram as minhas perguntas. Mais alguma coisa que você queira dizer?
Diego: Se quiser aprender sobre a falcoaria e se tornar um treinador de aves de rapina, tenha respeito pela arte e pelos bichos. Na hora que você coloca a luva de falcoeiro, é uma tradição milenar que você tá carregando.
Tenha respeito pelos animais de forma geral. Abandone praticas que fazem mal para eles, como fogos de artifício, por exemplo.
Se quiser ter um bicho desses, compre legalizado, faça o certo. A criação legalizada combate diretamente o tráfico. E estude!
E se você encontrar um animal desses machucado, entre em contato com o IBAMA ou a polícia ambiental, para que ele possa ser recolhido, tratado e reintroduzido na natureza.
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Recentemente a Turma do Gavião passou a ser um dos apoiadores do Cena Medieval! Agradecemos a confiança e a oportunidade de ter feito essa entrevista tão bacana.
Site e página no facebook:
Eles têm participado de diversos eventos medievais em SP, permitindo que os convidados conheçam e interajam com as aves.
O próximo evento que contará com a presença deles é o Jantar Medieval Ordo Draconis Belli, que acontecerá nesse próximo final de semana, em Socorro! Se você estiver por lá, não deixe de conhecer esses bichos fantásticos e aproveitar para aprender um pouco mais sobre eles.
Nos vemos por lá!
E acompanhem o Cena Medieval para mais entrevistas como essa!
Até mais! |
Veja também aqui no Cena Medieval:
Jantar Medieval Ordo Draconis Belli, nosso artigo contando como vai ser o evento!
Heidevolk, nossa entrevista com esses ícones do folk-metal em sua primeira passagem pelo Brasil!
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